Fatos e fotos sobre o histórico das chuvas em Natal
A Cidade do Natal tem como perfil o clima tropical úmido com chuvas no inverno e verão seco.
Até o dia de hoje Natal sofreu fortes pancadas de chuvas, com graves prejuízos por toda cidade e desabrigados em algumas áreas. Temos um grande número de crateras abertas, quedas de barreiras, bueiros estourados, casas alagadas e ruas interditadas pelo carreamento de terra.
O problema é antigo e extremamente previsível!
UMA VELHA HISTÓRIA
Primitivamente edificada “num chão elevado e firme” a cidade pouco se desenvolveu. Devia ficar compreendida na faixa em que atualmente funciona o Tribunal de Justiça em sentido transversal na direção do rio Potengi pela rua Quintino Bocaiúva (Gonçalves Dias, até poucos anos atrás) ao norte. Pelo sopé da mesma elevação, terminais das atuais ruas Padre Pinto, Santo Antônio, Voluntários da Pátria, Gonçalves Ledo, Vaz Gondim e Av. Rio Branco, ao sul. A Santa Cruz da Bica seria a cruz remanescente desse lado. Uma cruz ao norte, outra ao sul, os marcos fixadores dos extremos. A tradição guardou o nome de uma antiga rua da Cruz que ainda existia em fevereiro de 1866, pois nesta rua funcionava em prédio nacional naquele ano a Capitania dos Portos (Relatório do capitão-tenente João José Lisboa, 18.2.1886, Anexo à Fala do presidente José Moreira Alves da Silva lida a 15.3.1886, Natal, Tip. do Correio do Natal, 1886.). Poder-se-ia dizer, numa tentativa de simplificação, que a cidade nasceu na área que se inscreve no retângulo de que um lado seria a av. Rio Branco e o outro o rio e os dois outros seriam as ruas Apodi, ao sul, e Ulisses Caldas, ao Norte.
Depois que a cidade desceu para a Ribeira, aí ficou mais de dois séculos. Entre a Cidade Baixa (Ribeira) e a Cidade Alta, a ligação era feita através de uma ponte sobre o rio Salgado, que continuava por um aterro. Esse aterro sofria cada ano repetidas erosões. Uma solução vinha sendo preconizada desde vários anos, conforme justificou o Diretor de Obras Públicas, engenheiro Feliciano Francisco Martins:
“A prolongação do cais desta cidade ate o lugar denominado Passo da Pátria é um melhoramento da reconhecida utilidade; e, com efeito, além de facilitar o trânsito entre o bairro alto e o baixo da cidade, e dar um melhor aspecto ao porto, trazia ele consigo a aquisição de um terreno, que, por ser alagado diariamente nas preamares, nenhum préstimo tem hoje. Poderia, realizada a obra, prestar-se à edificação, e estou convencido que ela não se demoraria. Feito isto, poder-se-á então fechar a abertura que existe na parte mais baixa da praça e que se deixou para facilitar o fluxo e o refluxo das marés, enquanto não se concluir o aterro, que pode por ali ser conduzido em canoas. Convém que se proceda ao calçamento de toda a área do cais para evitar a lama que sobre ele formam as chuvas; que se coloquem varandas de ferro pelo lado do rio para embaraçar que inconvenientemente se faça desembarques de volumes. Estas obras que não são mais que o complemento das que estão feitas, servirão para conservação e aformoseamento do cais que tem esta cidade”.
Um ou mais caminhos ligando a cidade do Natal ao Rio Grande devem ter existido desde o início da colonização, a exemplo da estrada que o Senado da Câmara decidira construir ligando a aglomeração ao rio para melhor defendê-la contra os “gentios” em 1689, durante a Guerra dos Bárbaros (TEIXEIRA, 2009: 361). Contudo, um desses caminhos antigos é explicitamente citado em documento de 1805. Ele ligava o rio à acrópole, ou cidade alta, onde ficava a cidade propriamente dita. Uma ladeira íngreme, as chuvas dificultavam o trânsito de pessoas e mercadorias por ela. O Capitão-mor Lopo Jaoquim de Almeida Henriques fez melhorias significativas na ladeira, segundo um documento escrito e assinado pelos vereadores de Natal, juntamente com a “principal nobreza da população desta cidade”, em 29 de maio de 1805.
O SENHOR DAS CHUVAS
A pacificação dos índios só veio mais tarde, em 11 de junho de 1599, na cidade de Filipéia (atual João Pessoa-PB), quando os jesuítas Gaspar de Samperes, Francisco Lemos e Francisco Pinto, que os potiguares chamavam de Amanaiara (Senhor da Chuva), convenceram-nos a aceitar um tratado de paz com os portugueses. Pelo lado dos índios, os chefes Mar Grande e Pau Seco foram de grande ajuda para obtenção da paz, enquanto pelo lado português, além dos já citados sacerdotes, foi de substancial importância a participação de Jerônimo de Albuquerque.
O padre Francisco Pinto, o amanajara (senhor da chuva), informava que seria “relativamente fácil conservar os indígenas batizados ‘residindo em algumas partes, como será fazendo uma boa residência na nova cidade, que agora se há de fundar, obra de meia légua do forte do Rio Grande’”.
As informações sobre o primeiro quarto de século da história norterio-grandense são muito precários, mas apontam a lentidão com que se dava o estabelecimento dos núcleos coloniais, prejudicados pela fraqueza da terra “para roçados e canaviais, com escassez de chuvas, mais adaptável para a criação de gado” (SUASSUNA; MARIZ, 2002, p. 39).
ENTRE SECA E CHUVAS
Era final do século XIX e o Rio Grande do Norte vivenciava problemas nos campos econômico, social e político. Mesmo com a chegada do regime republicano, quase nada havia mudado. A economia encontrava-se bastante desestruturada, agravada pela seca que afetava o interior – trazendo prejuízos para a pecuária e agricultura – ou pelas chuvas excessivas no litoral – causando danos sérios à atividade açucareira.
Ainda sobre esse trecho da história potiguar, Nestor dos Santos Lima discorre sobre a seca e alguns melhoramentos implantados por Tavares de Lyra durante sua gestão governamental:
Vi a seca de 1904, com todas as suas amarguras e horrores, destender-se por todos os recantos da nossa terra, a capital invadida pelos infelizes flagelados, em busca de trabalho e de pão, ou dispostos a imigrar para o norte do País, em busca da Amazônia, de onde muito poucos voltaram ulteriormente. Quando, no seguinte ano, as chuvas caíram e o ritmo da vida se restaurou, em parte; pela esperança de novas safras e novos recursos financeiros, já o Governador Augusto Tavares de Lyra tratava de melhorar os aspectos urbanos da Capital dando-lhe um sistema de iluminação a gás acetileno, que servia Um grande trecho da cidade, entre a rua Silva Jardim e a Praça André de Albuquerque, mandando construir por administração a praça, que hoje tem o nome glorioso de Augusto Severo, o grande pioneiro da navegação aérea vitimado na catástrofe de 12 de maio de 1902, em Paris. (LIMA, 1954, p. 116-117).
CAMPINA RIBEIRA
Do século XVIII ao início do século XIX, o bairro da Ribeira caracterizou-se pela sua geografia, estando localizado em uma região pantanosa e insalubre, sendo até então ocupado pelas classes mais baixas Cascudo descreve a Ribeira como: Cercada pelas dunas e pelos coqueiros, cinquenta ou cem casas tímidas e espaçadas anunciavam a cidade. Lugar enfim onde moravam a pobreza, a indigência e a miséria – gritava, em 1850, João Carlos Wanderley no relatório à Assembléia (2007, p. 42).
O mapa de Natal de 1864, presente no “Atlas do Império do Brasil”, é o primeiro registro gráfico conhecido em que a cidade deixa de ser indicada apenas como um apenso esquemático aos elementos importantes aos interesses da navegação e defesa territorial da costa brasileira. Além da trama urbana e da massa edilícia representadas, aparece, elemento dominante inconteste na representação bi-dimensional da cidade, a mefítica Campina da Ribeira. Dividindo os dois núcleos iniciais de ocupação da cidade – os bairros da Ribeira e da Cidade Alta –, tornava-lhe mais difícil a comunicação e a circulação, quando da cheia das marés ou com as chuvas, e aumentava o terror miasmático à putrefação, à exalação de vapores e, principalmente, à estagnação das águas e dos ares, tornando-se campo propício, dir-se-ia, para o desenvolvimento e irrupção das epidemias.
Outro tanto se póde dizer a respeito da lagoa na Campina da Ribeira, a qual, ficando entre os dous bairros, em que se divide a Cidade recebe as aguas da chuva, como as que jorrão pelo cano do aterro na enchente das grandes marés; dessa mistura fica estagnada uma grande parte que não pode retrogradar, e que se putrefaz, lançando para a atmosféra em abundancia miasmas mortiferos, que felismente, sendo acarretados pelos ventos, que quasi sempre soprão de feição, parte se precipita sobre as águas do rio, e sobre os mangues, e parte vai exercer, reforçando os que lá encontra, sua ação deleteria nos habitantes doutro lado do rio, onde são mui frequentes as febres intermittentes, maxime no inverno […]”. (Wanderley, 1851, p.13.)
O autor também faz referência ao difícil acesso entre a Cidade Alta e a Cidade Baixa, ressaltando a necessidade de uma intervenção política na estrutura física da urbe (no caso, um aterro), bem como explicitar o interesse na ocupação e na regulamentação das terras do bairro: A única via de acesso entre Cidade Alta e Ribeira era a ladeira íngreme, escorregando feito sabão depois das chuvas. Nos papéis velhos a frase comum é o aterro. (CASCUDO, 1999, p. 148).
Localizada no bairro da Ribeira, no Largo do Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão, a antiga Praça da República era considerada um dos logradouros mais insalubres da cidade, especialmente em quadras invernosas, pois devido a sua situação topográfica, num nível abaixo da Cidade Alta, as águas das chuvas escoavam do bairro alto e se acumulavam na dita praça provocando o surgimento de lagoas nos seus arredores e, para completar, Existiam também os alagamentos constantes devido ao movimento da maré.
O primeiro esforço significativo nesse sentido estava na obra de melhoramento e aformoseamento da Praça da República, classificada como “a obra urbanística de maior significado da primeira década do século” (ARRAIS, 2009, p. 164). No entanto, até o ano de 1892 nada ainda havia sido feito. “O Caixeiro”, em mais uma de suas reportagens denunciativas reiterava as singularidades “pitorescas” e “bucólicas” da praça que, por não apresentar um aterro e um sistema de drenagem eficiente, até então constituía local de descanso para “jumentos” e “suínos”.
A Ribeira era o bairro comercial por excelência, a proximidade com o porto, que constantemente sofria reparos, a localização das mais importantes casas comerciais da cidade, a existência de clínicas médicas e as imponentes presenças do Teatro Carlos Gomes, do Grupo Escolar Augusto Severo e da Escola Doméstica do Natal, exigia a providência de obras que fizessem daquele bairro um espaço razoavelmente saneado e higienizado. Para transformar o bairro da Ribeira em um espaço mais saudável o receituário seguido pelos governos foi o mesmo estabelecido para a Cidade Alta, não descurando os administradores do fato de ser a Ribeira uma vítima constante dos alagamentos em época de chuvas e em dependência das tábuas de marés, sendo necessário, nesse caso, um trabalho mais intenso de terraplenagem, alinhamentos de terrenos e aterramento de áreas alagadas.
Um outro artigo do jornal “A República” retomou a discussão sobre a questão da insalubridade aliada ao problema da água estagnada, sob o título “é com o fiscal”, o articulista relatava sobre as chuvas ocorridas por aquela época em Natal, primeiros meses de 1902, e expunha que, devido a um bom inverno, formaram-se inúmeras lagoas nas ruas do bairro da Ribeira, acúmulos de água esses que estavam sendo um verdadeiro transtorno para a população do bairro e, por isso, era pedido alguma resolução por parte do poder público em torno do problema.
Tal espaço sempre foi alvo de intenções do poder público desde o século XIX, por ser uma área alagada pelas marés do Potengi (considerada insalubre, precisando ser aterrada) e pela sua boa localização para uma área de lazer da população, uma vez que interligava os dois principais bairros da cidade. Mas foi em 1892 que se tornou oficialmente praça, no jornal A República (Natal, 12 mar. 1892) desse ano lia-se que “[…] a praça que fica em frente da estação da via férrea do Natal a Nova Cruz, desde a casa que funciona a estação telegráfica até a esquina da fábrica de fiação, seja denominada Praça da República”. Mas ainda assim, esta apresentava graves problemas em sua estrutura física, em tempos de chuva ficava totalmente alagada.
No dia 14 de abril de 1902, uma pequena medida saneadora foi tomada com o alvo de impedir a retenção de água durante a maré cheia, fato corriqueiro em boa parte do bairro da Ribeira àquela época nos períodos de chuva, foi mandado consertar a porta d’água do cano do escoadouro da Praça da República, de forma que durante a maré cheia as águas não penetrassem mais naquela praça. No dia 26 de abril, foi noticiado que “continuam a cahir bôas chuvas nesta capital”. No mesmo dia, era veiculada uma reclamação atribuída aos moradores do bairro da Ribeira, afirmando o articulista que o jornal tinha “recebido diversas reclamações, no sentido da Intendencia mandar exgottar ou coisa que o valha, diversas lagoas que ficam em muitas ruas da Ribeira, após as chuvas” (É com o fiscal. A República, 26 de abril de 1902).
Na mensagem de 1905, Tavares de Lyra esboça um pequeno histórico acerca da preocupação sanitária e dos problemas decorrentes da área que viria a se tornar a praça. Segundo o governador, já havia uma preocupação por parte da Intendência em 1853 para o aterramento desse local, inclusive proibindo qualquer construção do local, lei que se tornou letra morta em 1860, mas que ainda havia uma grande área desocupada que deveria ser aterrada, pois a chuvas torrenciais “se formava um verdadeiro pântano, cuja extinção, como medida de hygiene, era insistemente, reclamada pela população”. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo do Estado do RN em 14 de julho de 1904, p.6.
Portanto, o então governador Tavares de Lira precisou fazer um novo aterramento e mandou construir a praça que foi inaugurada no dia 15 de novembro de 1905 (Cf. A República, Natal, 15 nov. 1905.), homenageando seu cunhado herói e pioneiro da aviação Augusto Severo. A Praça Augusto Severo foi a primeira grande praça pública a ser construída em Natal, e foi implantada na Ribeira, em razão do bairro ser o mais importante naquele momento. Isso revela a sua importância como principal atrativo da cidade, onde durante mais de duas décadas aconteciam shows de música todos os finais de semana.
A Ribeira, enquanto bairro que no início do século XX passou a se caracterizar como uma área comercial da cidade, e que, portanto, constituía um lugar de passagem e de encontro de pessoas, tornara-se um lugar privilegiado para a construção de um prédio que se queria “dar a ver”. Além disso, o bairro já havia sido alvo de intervenções diversas no final do século XIX, que buscavam promover a sua modernização com obras de aterramento, pavimentação de ruas e embelezamento que, entre outras coisas, tentavam resolver também os problemas das constantes inundações do bairro em épocas de chuvas. A própria Praça Augusto Severo foi resultado dessas intervenções efetuadas pelo mesmo arquiteto, Herculano Ramos, encarregado do projeto de construção do grupo escolar
e pelo tratamento arquitetônico do aterro da Campina da Ribeira alguns anos antes, em 1904.
Inicia-se então a reorganização da Ribeira com a implementação de duas ruas projetadas que foram a Rua Sachet e a Avenida Almino Alfonso (Conforme OLIVEIRA, Giovana. De cidade a Cidade, p.69) além de alinhamento da rua do Comércio (Atual rua Chile) com a Rua Doutor Barata para evitar empoçamento de água de chuva. Nas palavras da Giovana Paiva, essas ações visavam entre outras “intervir para direcionar a expansão da cidade e reformar o interior das áreas ocupadas” (Idem, p.69) .A construção de praças, jardins e teatros possuíam um sentido de prover a cidade de mais espaços de convívio social quase inexistentes no início do século XX e fariam parte das reclamações da elite letrada.
AS CHUVAS DE 1912
No dia 17 de abril de 1912, sem nenhuma mentira, o jornal carioca “Correio da Manhã” trazia a notícia “As chuvas em Natal”, que abaixo reproduzo.
Em meio a notícias do afundamento do transatlântico Titanic, troca de acusações entre os partidários do governador Alberto Maranhão e a sua oposição, os jornais locais noticiavam os estragos em uma cidade que tinha pouco mais de 20.000 habitantes. A atual Avenida Câmara Cascudo, antiga Junqueira Aires (E anteriormente Rua da Cruz), se transformou “Em um rio de lama”.
Casebres desabaram, ruas ficaram esburacadas e a circulação ficou comprometida. Não foi divulgado o nível de prejuízos econômicos, mas as notícias de chuvas em 1912 se repetem desde março a maio daquele ano. Foi até notícia em jornais do Rio.
Naquele tempo as dificuldades de transporte e comunicação eram muitas e o apoio aos que sofriam com enchentes eram limitados. Mas em contrapartida a população era pequena e se vivia mais na zona rural. Há 108 anos, certamente pelo ainda diminuto tamanho da cidade, não havia tanto detalhamento sobre os estragos na capital. Podemos ver que em meio às notas sobre transtornos em Natal havia muita satisfação com as chuvas que ocorriam no interior, mesmo que estas ocasionassem destruições, como ocorreu no vale do Rio Ceará-Mirim em 1912.
Fonte: Com informações de Tok de História
PASSO DA PÁTRIA
A instalação do parque da Central na Esplanada Silva Jardim demandava discussões acerca da propriedade das terras sob sua influência e aprofundava a segmentação espacial entre as Rocas e a Ribeira – uma vez que representava um novo elemento de fronteira entre as duas frações urbanas –, a consolidação do parque e da linha da Great Western no traçado urbano de Natal vinha ocasionando consequências significativas. A falta de infraestrutura da linha pertencente a essa estrada de ferro no trecho que atravessa a cidade, especialmente no tocante à drenagem das águas da chuva, resultaram em diversos prejuízos materiais, especialmente em relação ao fato de que determinadas partes da cidade – nesse caso, o Passo da Pátria – poderiam ter a comunicação com o resto da cidade prejudicada (VARIAS, A Republica, Natal, ano 26, n.76, 06 abr. 1914a). Essa fração urbana já vinha sofrendo as consequências da segmentação proporcionada desde a construção da linha – em fins do século XIX – e que trariam implicações como o obstáculo na comunicação entre o Passo da Pátria e a Cidade Alta e o consequente declínio de sua feira.
Além desses fatores, a eclosão de diversas estiagens durante as primeiras décadas do século XX também resultou no uso das redes férreas, em especial a linha da E. F. Central, no processo de êxodo das áreas atingidas, acumulando-se nas cidades abrangidas pela linha e, sobretudo, em Natal.
BALDO
Compreendido como um caso de falta de asseio e de limpeza pública, as lagoas e os acúmulos de água nos períodos de chuva eram constantemente alvos da fúria dos aterramentos. A ideia de que a água era o mais importante veículo de proliferação dos agentes patogênicos de diferentes tipos de enfermidades, alimentava essa necessidade de por fim às lagoas e aos alagadiços formados em épocas chuvosas. Os aterramentos eram, em geral, feitos pelos poderes públicos, a partir de indicações dos inspetores de higiene e de reclamações veiculadas pela imprensa e atribuídas à população.
A lagoa de Manoel Filipe deve o fato de ter sido poupada de aterramentos a sua localização, mas também a ocasião de ser ela um dos alimentadores da fonte do Baldo, onde estava o reservatório d’água da cidade e para onde as águas da lagoa afluíam em época de chuva.
Como era hábito à época os cemitérios, os matadouros públicos e os depósitos de lixo eram construídos fora dos limites da cidade. No caso de Natal, esses equipamentos urbanos foram construídos nas proximidades do Baldo. É de se imaginar que a água consumida na cidade tinha, no mínimo, uma qualidade duvidosa.
A carta resposta escrita pelo médico Antonio China, já mencionada anteriormente, aproveitava também para tecer comentários sobre o tratamento e o fornecimento d’água na cidade. Nela, Antonio China diz que
Ainda não ha muito, depois de exame, a que procedemos nos reservatorios da empreza d’agua pedimos oficialmente a captação das aguas pluviaes, que, do trecho meridional da Cidade Alta vão ter nos mananciaes da referida empreza (Questões de higiene. A República, 15 de junho de 1901),
Explica então, que esse pedido foi feito com a intenção de que fosse evitada a chegada ao reservatório d’água das águas das enxurradas, pois as águas da chuva lavavam o bairro da Cidade Alta, e devido a sua condição topográfica localizada em lugar mais alto do que o reservatório da empresa d’água, todo o material encontrado pelas águas da chuva, desde lixo a fezes, era conduzido para a região do Baldo e do sítio do Oitizeiro. Em outras palavras, sem o feito de evitar a chegada ao Baldo e ao Oitizeiro das águas vindas da Cidade Alta devido às enxurradas, a água coletada pelos reservatórios de água da cidade já chegava muito contaminada.
Apesar de sentir-se “desobrigado”, o médico reforçava a disposição de trabalho dos profissionais da Inspetoria de Higiene Estadual, quando expunha que apesar do
Exiguo contingente de recursos daquela inspetoria, no caso do matadouro público, mesmo exorbitando o plano circunscrito daquela instituição e dos seus profissionais, aconteceu por ocasião de, a exigencias desta inpectoria, mudar-se o local da carnagem, que então se fazia sobre colonias de vermes, à margem do rio, sem cobertura que a abrigasse do sol e da chuva (Questões de higiene. A República, 15 de junho de 1901).
o médico Antonio China, em 1901, na sua carta dirigida à redação do jornal “A República”, falava da exigência feita pela Inspetoria de Higiene Estadual para que se fizesse a mudança do lugar da carnagem, pois a mesma era feita “sobre colonias de vermes, à margem do rio, sem cobertura que a abrigasse do sol e da chuva”.
Sob o temor da chegada da peste bubônica em Natal, o jornal “A República” dizia ter recebido uma carta, na qual eram feitas diversas críticas à empresa encarregada do serviço de coleta de lixo e ao serviço por essa empresa coordenado. Para o suposto leitor, o problema da coleta do lixo, especialmente na Cidade Alta, era exatamente a falta da coleta, e, saindo em defesa do governo do Estado , dizia que: “quando se começou a fazer a limpesa das ruas, allegando o contractante da limpesa publica que não podia dar conta da remoção do lixo, o Estado foi em seu auxilio” (O lixo. A República, 01 de maio de 1902). No entanto, ainda segundo o suposto denunciante, depois de receber a colaboração por parte do poder público estadual “parece que o contractante entendeu que não tinha mais obrigação de remover lixo por sua conta, tanto que ha muitos dias não transita mais uma só carroça pela Cidade Alta, onde o lixo vive exposto nas calçadas, decompondo-se ao sol e à chuva” (Idem).
Essa noção poderia referir-se tanto ao sentimento de não acomodação, de insatisfação, às vezes mesmo de impotência, frente às dificuldades em acalentar o sonho de construção de uma cidade moderna, como repetiria um cronista anônimo, ainda em 1912, que não conseguia se conformar:
“Com o monte de lixo feito diariamente no pé da calçada do mercado do lado do quartel general, pelos respectivos negociantes. Com a innundação na Ribeira,
quando cai qualquer chuvada. Com immundicie na rua Gonçalves Dias; […]. Com o bond de burro que ainda funciona para o extinto prado. […] Com o Polytheama, sem ventiladores, não obstante seja uma casa tão decente”. (“Não posso me conformar”, O Martelo, Natal, s/n, p.2, 02 jun. 1912.).
A persistência nesse quadro de precariedade começava a pôr em risco, formulava-se, os padrões urbanos “civilizados” minimamente alcançados; pior, o estado da salubridade pública permanecia preocupante, mesmo sem a eclosão de epidemias ou endemias:
O lixo exposto às chuvas constantes do inverno que atravessamos, em caixões abertos, fermenta, apodrece, desenvolve gazes lethaes, cria enxames de moscas, o que tudo vae atacar a vida do natalense, […]. Os animaes de tiro da Empreza, pobres burros lazarentos, baixaram ao hospital, […]. Natal tem visto crescer o seu coefficiente de mortalidade, à medida que cresce a incuria dessa Empreza (ETFL).”
O EMBATE DE LIGEIRAS CHUVAS
As obras de urbanização da cidade foram muitas vezes utilizadas como meios de denúncia da falta de fiscalização dos trabalhos e do mau uso do dinheiro público, que se demonstrava, por exemplo, por meio da baixa qualidade do material empregado nas reformas, além da política de favorecimentos largamente empregada pelos Albuquerque Maranhão. Sobre as obras públicas, o jornal Diário do Natal informava no ano de 1906:
Não exageramos disendo que as obras mandadas executar na administração do dr. Augusto Lyra nada valem, são de duração efêmera – e ahi estão para proval-o o caes Augusto Lyra […] os calçamentos que não resistem a menor enchurrada; ahi estão os passeios circulando o jardim da praça Augusto Severo […] pois depois de qualquer chuva ficam intransitáveis; ahi estão os cordões para as calçadas dos prédios, nas ruas que foram empedradas – se desmanchando, porque a argamassa empregada na construção dos mesmos foi de péssima qualidade […]. (DIÁRIO DO NATAL, Natal, nº3074, 17, nov. 1906.).
No mesmo ano, o jornal Diário do Natal continuava questionando os problemas das obras na capital potiguar, a qualidade e durabilidade dos trabalhos e as verbas gastas com inúmeras reformas:
Quem percorre os serviços ou obras públicas, feitos nesta capital […] conhece a logo a mais supina incompetência da parte dos executores dessas obras, porque ellas, ao embate de ligeiras chuvas, estão como que se lequifazendo, ou desmoronando. (DIÁRIO DO NATAL, Natal, nº2915, 60, mar. 1906.).
O jornal da oposição fazia questão de destacar como as obras públicas realizadas na capital desmoronavam “ao embate de ligeiras chuvas” (DIA a dia: as obras públicas. Diario do Natal, Natal, 30 mar. 1906; SOUZA, Itamar. A República Velha no Rio Grande do Norte. Op. cit., p.239-242.), refletindo a “incompetência da parte dos executores dessas obras” (Idem). O caráter temporário das reformas que se desfaziam com as chuvas, fazia com que a capital do Rio Grande do Norte estivesse transformando-se na “terra do já teve […] aqui já teve um jardim público, já teve um theatro, já teve umas ruas calçadas &…” (Idem. Ver ainda: ADIADA para as Kalendas gregas? Diario do Natal, Natal, 12 jun. 1906.). Várias notas denunciavam a qualidade duvidosa dos materiais empregados e os problemas nos processos das reformas (DESMORONOU-SE. Diário do Natal, Natal, 17 nov. 1906; A DECADÊNCIA é completa. Diario do Natal, Natal, 29 dez. 1906). Outras ressaltavam ainda a morosidade das obras, como a de março de 1907, que criticou a lentidão da construção do teatro Carlos Gomes (DIVAGAÇÕES. Diario do Natal, Natal, 19 mar. 1907). A construção desse teatro foi iniciada em 1900 e concluída em 1904. A partir de 1908 Alberto Maranhão, em sua segunda administração, iniciou uma reforma que somente foi concluída em 1912, processo consideravelmente lento (Em 1957, o teatro Carlos Gomes recebeu a denominação de teatro Alberto Maranhão, ver: SOUZA, Itamar de. Nova História de Natal. Natal: Departamento Estadual de Imprensa, 2008. p.251-252).
O jornal Diario do Natal, em novembro de 1906, ao criticar os modos de operação da gestão do genro de Pedro Velho (Augusto Tavares de Lyra), afirmou que o então governador destinou vultuosa verba para indivíduos como Polidrelli, Herculano Ramos e Eduardo dos Anjos, com os quais celebrou “uma serie de contractos sem concorrência e cheios de favores officiaes” (ULTIMOS actos. Diario do Natal, Natal, 09 nov. 1906.). Para o periódico oposicionista, o que aconteceu com a obras de Dos Anjos representava todas as obras encomendadas pelo governo, realizadas sem concorrência e fiscalização, “feitas a vontade dos felizardos contractantes, que estão todos ricos e o Estado escangalhado” (DESMORONOU-SE. Diario do Natal, Natal, 17 nov. 1906.).
As críticas do Diario eram recorrentes. Já em agosto de 1905, antes das notas acima mencionadas serem publicadas, Eduardo dos Anjos utilizou o A Republica para defender-se de acusações do periódico oposicionista. Nessa nota, Eduardo justificou a destruição de calçamentos realizados por ele por ocasião de chuvas que ocorreram na cidade. De acordo com o empreiteiro, a destruição não foi causada por “falta de critério no serviço” (SEMPRE perverso. A Republica, Natal, 19 ago. 1905.), conforme acusavam os redatores do Diario, e sim provocada pelo efeito das enxurradas ocorridas em Natal. A influência de Dos Anjos era considerável na capital, a ponto de, em 1913, ter sido cogitado nas eleições municipais para ocupar o cargo de intendente. Todavia, por razões desconhecidas, a candidatura do “operoso artista” não foi consolidada nesse período (SANTOS, Renato Marinho Brandão. Natal, outra cidade!. Op. cit., p. 102.).
Em novembro de 1904, Eduardo dos Anjos foi contratado por esse Governo para realizar o calçamento de ruas na Ribeira e Cidade Alta. O despacho oficial do Estado não informa que ruas seriam calçadas, mas sabemos que no início do ano seguinte elas foram concluídas, tendo recebido o dito “empreiteiro” 170$000 de saldo pelo serviço em fevereiro de 1905 (A REPUBLICA, Natal, 04 fev. 1906.). O calçamento feito parece não ter resistido muito às chuvas, tendo se deteriorado parte dele, em frente à fábrica de tecidos, em poucos meses de uso, o que gerou reclamações do órgão opositor, o Diario do Natal. Eduardo dos Anjos, por meio d’A Republica, responderá que não foi por deficiência técnica que a obra se deteriorou, mas por conta do alicerce em que ela estava assentada, construído antes de seu serviço, e pela força da chuva, que deteriorou também calçamentos mais antigos (Id., Natal, 19 ago. 1905.).
CIDADE NOVA
A idéia de uma “cidade nova”, situada num local privilegiado (mais alto e mais plano que a cidade até então existente), com o mínimo de contato com a cidade antiga e o seu tratamento diferenciado (projetado por um profissional especializado, dentro de padrões europeus e com um desenho totalmente distinto do que existia na cidade antiga), é a solução perfeita para “melhorar a cidade” e condiz com os discursos de presidentes de província, médicos e engenheiros que ao longo do século 19 falavam por um lado das belezas naturais de Natal e por outro das mazelas causadas pelas bexigas, pelas chuvas e pelos miasmas emanados pelos cemitérios, matadouros públicos e demais edificações de uso “sujo”.
Entre Petrópolis e Tyrol não há descontinuidade do solo, que é bastante permeavel, infiltrando se rapidamente as águas de precipitação, de modo que depois das chuvas não há a menor collecção d’agua. (CICCO, Januário. Como se Hygienizaria Natal. In: LIMA, Pedro de. Saneamento e modernização em Natal: Januário Cicco, 1920, p.7-8.).
Em 1913, a família Cascudo muda-se para uma rica chácara no bairro do Tirol, a “Vila Amélia”. “De 1914 a 1932 morei no Tirol, olhando o Morro Branco que basilava a pista do horizonte sul. Entre o morro anterior e ele, o espaço de permeio, era chamado o Buraco da Velha, e anunciava, infalivelmente, as chuvas quando as nuvens se aglomeravam nesta área.” (CASCUDO, Luís da Câmara. Morro Branco. A República, 04 de março de 1959.).
Lá viveu o cotidiano de um rapaz rico, cercado por todos os confortos. Sua vasta biblioteca, repleta de livros importados da Europa, constituía uma atração à parte, e para visitá-la acorriam muitos habitantes da cidade. Os amigos costumavam chamá-lo de Príncipe, daí o nome da chácara, “Príncipado do Tirol”.
Nos anos 60 nos períodos de chuva, uma imensa lagoa se formava a partir da Rua Seridó, dobrava a Afonso Pena, passando pelo cruzamento com Rua Potengi e chegando à Rua Trairi. Era uma festa! Ficávamos ricocheteando pedras na superfície da lagoa, à noite o chocalhar dos sapos completava o cenário bucólico.
PRAÇAS
É por volta de 1910 que a prática do futebol começou a ser efetivada em Natal, com a definição de espaços específicos para a realização das partidas. Um dos primeiros locais dessa prática foi a Praça Pedro Velho no bairro da Cidade Nova. Os treinamentos e jogos eram realizados especialmente na parte da manhã, logo cedo, ou nos finais de tarde, quando o clima estava mais ameno, tendo as referidas atividades sempre um público cativo, que acompanhava atentamente o desempenho dos jogadores. Em dias de chuva, os treinamentos ou competições eram adiados (Notas esportivas. A República 17 de agosto de 1910). As competições entre os times do Potyguar Foot-ball Club e o Natal Foot-ball Club eram noticiadas como um importante evento e sempre era informado que o time mais preparado físico e tecnicamente era o que obtinha a vitória.
Com o passar dos anos, na “Era Juvenal Lamartine”, os jogos aconteciam no antigo estádio do Tírol, onde a torcida alvinegra assistia às partidas de pé, em uma faixa de terreno entre o muro e o alambrado, cercado de arame, sem proteção alguma contra o sol e a chuva, enquanto a torcida do clube rival com maior poder aquisitivo assistia aos jogos de uma arquibancada coberta, numa posição privilegiada, com toda visão do gramado e demais áreas do estádio.
Nos anos vinte tornou-se comum a prática pedagógica das aulas passeios, atividades escolares desenvolvidas fora do ambiente da escola, ao ar livre, onde era
discutido o conteúdo trabalhado pelos professores na sala de aula e mostrado a forma como aquele conteúdo se apresentava na natureza. Essas aulas, agradáveis e salutares, eram geralmente realizadas nos jardins da cidade, como a que aconteceu no dia 15 de abril de 1920, quando o grupo escolar Augusto Severo realizou, com a presença do diretor do grupo, Nestor Lima, todos os professores e uma grande quantidade de alunos, nos jardins da Praça Augusto Severo, uma série de lições de geografia e de botânica, mesmo com a intensa chuva que caía no dia. (Pelo ensino – passeios escolares. A Republica 20 de abril de 1920).
CALÇAMENTOS
O relatório de 1926, rico em quadros, tabelas e imagens da cidade, mostra que a cidade começava a ser remodelada por meio de diversas obras. Além da Avenida Atlântica, concluída naquele ano, e da estrada de rodagem que ligava o bairro das Rocas à região central da capital, o Conselho de Intendência investiu em diversas outras ações para aformosear a cidade, melhorar suas vias de comunicação e tornar mais racional seu traçado. Entre elas, estavam a construção do cais de desembarque na Tavares de Lyra, o novo calçamento na Praça Augusto Severo (ver imagem a seguir), a reconstrução da ponte de Guarapes, na estrada de rodagem que ligava a capital à cidade de Macaíba, além da construção de uma galeria para drenagem das águas pluviais na Avenida Junqueira Ayres451, sempre alagada nos períodos de chuvas.
A funcionalidade, as sociabilidades e as diferenças econômicas inseridas agora no contexto espacial da Cidade de Natal, nos indicam uma ruptura no modo de se construir e praticar o espaço urbano. Desde a implantação da República, as ruas e avenidas adquiriram maior importância, e passaram a ser consideradas como
representantes da cidade. Observamos que no século XIX, segundo o relato de Koster feito em 1810, não havia nenhum tipo de pavimentação nas ruas, que se constituíam de “areia solta”. Durante as três primeiras décadas do século XX, aconteceu o “empedramento” das ruas da Ribeira, que era feito com pedras irregulares retiradas das praias de modo bastante rudimentar. Segundo o relato de um jornalista no ano de 1930:
Estes calçamentos além da aspereza das arestas cortantes das pedras, eram completamente desnivelados, o que permitia a formação verdadeiros lagos na Cidade, após as chuvas. O que se passava a este respeito na Ribeira, especialmente, constitui história de ontem. Não é possível que haja alguém que já tenha esquecido o que ocorria, em regra, desde a fábrica de tecidos, por toda a Praça Augusto Severo, ruas Dr. Barata, José Bonifácio, Avenida Nísia Floresta etc… Fenômeno idêntico ocorria na Avenida Junqueira Aires, a via única de acesso da parte baixa da Capital à Cidade Alta… (A República, Natal, 10 jun. 1930).
A citação acima foi publicada após serem feitas melhorias na pavimentação da cidade, efetuadas no decurso da administração do então prefeito Omar O’Grady, que construiu 21.016 (Cf. A República, Natal, 1 jul. 1929.) metros quadrados de calçamento (paralelepípedos e macadame pichado). Observa-se que a antiga pavimentação nada mais é que “história de ontem”, o que torna claro o interesse em destruir a cidade atrasada e sobre ela, construir a cidade moderna. Fica evidente então que o bairro da Ribeira valorizou-se bastante após a pavimentação, quando foram resolvidos os problemas relativos às inundações após as chuvas. Essa pavimentação teve continuidade durante a administração do prefeito Gentil Ferreira de Souza, de 1930 a 1940.
Em 1941, lia-se no jornal A República que se realizaram uma série de obras para melhoria das ruas e praças da cidade, que com a intensificação do trânsito ficaram desgastadas e não supriam mais as necessidades do momento. A substituição do calçamento antigo, irregular, por pavimentação moderna, com declive sensível para o fácil escoamento das águas provocadas pelas chuvas, é também uma das finalidades visadas pelos serviços a que nos referimos. As obras se estenderão por outras ruas e praças. Isso, sem prejuízo do calçamento normal da Cidade, realização em que a prefeitura se vem empenhando sem qualquer solução de
continuidade, no desejo louvável de aumentar, na medida dos esforços possíveis, a área da cidade dotada de pavimentação adequada (A República, Natal, 17 ago. 1941).
Na citação acima se percebe o interesse da administração municipal em relação à modernização da cidade no período em questão. Essas atividades serão intensificadas no decorrer dos anos 1940. Na transição da administração do prefeito Gentil Ferreira de Souza ao prefeito Joaquim Inácio de Carvalho Filho, este último afirma que sua administração será um período de grandes realizações na cidade: “trata-se de trabalhos que se destinam francamente a reformar o aspecto urbano da nossa capital” (A República, Natal, 25 jan. 1942).
RETIRANTES DA SECA
A primeira imagem apresenta um grupo de indivíduos magros, sobretudo idosos e crianças, sentados no chão, nas proximidades de redes amarradas em troncos de árvores. Ao fundo é possível identificar os muros e parte da Vila Barreto, residência de Inês Augusta de Albuquerque Maranhão Paes Barreto, irmã de Pedro Velho e viúva de Juvino César Paes Barreto, industrial de destaque no estado (ROSAS, José Tarcisio (Coord). Personalidades históricas do Rio Grande do Norte (séc. XVI a XIX). Op. cit., p.99.). Essa residência localizava-se na Ribeira, no trecho existente entre o que seria a praça Augusto Severo e a avenida Junqueira Aires. É possível conjecturar que os retirantes estavam acampados nas proximidades de seus locais de trabalho, possivelmente os pais das crianças e os filhos dos idosos representados na imagem trabalhavam nas obras de construção da praça Augusto Severo, já que várias turmas de retirantes foram deslocadas para tal serviço. Enquanto seus filhos, maridos e netos trabalhavam na construção de praças e jardins, de palacetes e estradas, os sujeitos fotografados esperavam nos acampamentos improvisados sujeitos ao sol e à chuva. O muro é emblemático, divide duas realidades que conviviam em diversos espaços da urbe. De um lado um palacete, de outro a moradia improvisada.
A mensagem de governo, em 1904, enviada pelo governador Tavares de Lyra, era categórica na afirmação de que o estado sanitário de Natal houvera se alterado devido a aglomeração de retirantes vítimas do flagelo da seca, que naquele ano castigara o interior do Rio Grande do Norte.
O jornal de oposição “O Diário do Natal” avaliando a mensagem governamental criticou o fato de ter sido encarregado, pelo governo, dois homeopatas para visitar e fornecer remédio aos doentes, o que segundo o articulista era muito tarde e somente aconteceu essa ação
Depois de terem morrido muitas pessoas pelas ruas e praças desta cidade, expostas ao sol e à chuva, tomou S. Exª. essa medida, aliás incompleta e além da situação. – Porque nessa emergência lançou S. Exª. mãos de 2 curandeiros e não de 2 medicos, que os tinhamos e dos mais distinctos da capital? (Dia a dia – A mensagem. O Diário do Natal 16 de julho de 1904).
No período da Segunda Guerra Mundial a intendência Estadual precisava se municiar para enfrentar outra guerra: a guerra contra a fome e contra as restrições. Não interessava aos grupos dirigentes da cidade que homens, mulheres e crianças desnudados expusessem suas misérias na capital, que se espalhassem pelas ruas e batessem às suas portas, assim como não mostrassem a miséria social aos militares estadunidenses. Para isso, tratou de construir abrigos, determinou que a polícia impedisse a entrada dos que chegavam e os recolhessem a lugares improvisados. Estes eram barracões, construídos na periferia distante da capital, lugares isolados onde os flagelados eram retidos e forçados a se manterem afastados da área urbana:
O abrigo dos flagelados fica num descampado longínquo da cidade, no imenso areal do Alecrim. […]. É um longo empalhado de emergência, uma morada de caráter absolutamente provisório. Nas suas divisões internas passaram a respirar os emigrantes do sertão, acossados pela falta de culturas, de trabalho, de esperanças, de chuvas. Não é tão grande a capacidade do abrigo (FRANÇA. Aderbal, Os quadros da seca. A República. Natal, 17 maio. 1942., p.8).
CENTENÁRIO DE FREI MIGUELINHO
Tirada de um prédio na Av. Tavares de Lira, a foto procurou registra o momento em que o cortejo cívico, guiado pelo carro triunfal, deixa a Rua Frei Miguelinho. Antes de tudo, tomemos a foto (e o um conjunto ao qual pertence), como mais um objeto, mais um elemento que integra essa rede de relações da qual participa como um recurso visual de pontos destacados das comemorações. Dessa forma, os elementos que condicionam sua existência enquanto recurso (máquina, fotógrafo, enquadramento, foto, seleção de um momento específico etc.) são mobilizados em função de sua participação nesse enredo associativo das comemorações do centenário de Miguelinho.
Num plano amplo, a foto dá conta do momento exato em que o carro triunfal chega ao final da Rui Frei Miguelinho, que é tomada em sua extensão pelo cortejo. A
mobilização da cidade, estimulada pelo IHGRN e veiculada do jornal oficial, pode ser deduzida na foto pelas portas fechadas dos estabelecimentos comerciais. Em uma das esquinas, nas varandas de um sobrado, pessoas assistem ao desfile cívico. Na Av. Tavares de Lira, uma grande poça d‟água, marca da chuva que naquela manhã obrigara a transferência do desfile para a tarde.
BONDES
Os bondes, apesar das obras de prolongamento das linhas, começam já em 1912 a apresentar problemas técnicos significativos, especialmente na linha em direção ao Alecrim. O bairro possuía como um elemento delimitador que o separava da cidade a região do riacho do Baldo, que alagava constantemente durante os períodos de chuva, ocasionando a interrupção do serviço de bondes ao Alecrim. Esse elemento natural, portanto, oferecia um importante obstáculo ao acesso das populações a essa zona da cidade.
O bond deixou de ir por motivo de verdadeira força maior, único que poderia justificar semelhante falta. Já o bond que vinha do Lazareto sahiu ás 7 e 20 teve grande difficuldade em passar na curva do Baldo pelo acumulo de areia que já então existia, vinda com a chuva de todos os lados, pois é sabido que esse é o logar mais baixo daquella região, difficuldade que foi percebida pelo chefe do trafego que vinha n’esse bond. Quando chegou á Fabrica de Tecidos, já o pessoal da conserva ahi estava, retirando a areia que também ahi se reunia. O mesmo chefe do trafego deu as providencias necessárias para o desaterro na curva do Baldo, e depois de outras providencias de occasião foi assistir a esse serviço com a chuva que com força continuava a cahir e voltou pelas 81/2 para não deixar que o bond do Alecrim fosse, por ter visto ser impossível elle passar. […] a providencia definitiva aqui é o levantamento da linha na curva do Baldo, que será levada a effeito o mais cedo que as circumstancias o permittirem (EMPREZA de melhoramentos, A Republica, Natal, ano 24, n.112, 23 maio 1912b, p. 01).
Apesar da crescente importância que o bonde vai assumindo no contexto urbano, os serviços, embora ampliados, continuam a apresentar condições precárias de funcionamento. No dia 14 de abril de 1914 é publicada no periódico “A República” uma reclamação em relação à “péssima” condição da linha de bondes que serve o bairro do Alecrim. É interessante ressaltar que o artigo enfatiza o fato de que os habitantes do bairro são dependentes dos serviços do bonde e designa-os como “passageiros obrigados” da linha, como pode se constatar no trecho selecionado abaixo.
A linha electrica do Alecrim nunca ofereceu tão pouca segurança aos passageiros obrigados dos bondes da Empresa Tracção, Força e Luz, que são os habitantes do bairro do Alecrim, como actualmente. O ramal que leva áquelle futuroso bairro, ainda mais damnificado nestes últimos dias pelas chuvas torrenciais que desabaram sobre esta capital e que produziram na margem da mesma linha grandes escavações, apresenta aos olhos dos infelizes passageiros a perspectiva de um desastre horrível, bem fácil de verificar-se não somente por aquelle motivo, como também pela vertiginosa carreira dos carros, quando atravessam a extensa rampa dadas as péssimas condições em que se acha assente a linha em quasi todo aquelle trecho (VARIAS, A Republica, Natal, ano 26, n.81, 14 abr. 1914b., p. 01, grifos nossos).
O bonde é incorporado nesse contexto como um elemento participante na vida cultural da cidade e em especial no Alecrim. As comemorações em virtude do centenário de Frei Miguelinho em Natal, e no Alecrim mais especificamente, são marcadas pelas menções ao transporte dos convivas pelos bondes elétricos nos diversos periódicos.
Apezar das grandes chuvas que cahiram nesta capital desde a madrugada do dia 12, logo ás primeiras horas da manhã já era grande o movimento nas ruas. Os bondes da Empresa Tracção, Força e Luz transitavam completamente cheios, sendo insuficientes para satisfazerem a nossa população (A REPÚBLICA, 1917b, p. 01).
A Junqueira Ayres, no final da década de 1920, era a avenida por onde passavam os bondes e os ônibus, desciam as normalistas e estudantes rumo à Escola Doméstica; rumo à Av. Tavares de Lira, iam-se às vitrines à moda parisiense, aos cafés e rotisseries e aos pontos chics de reunião, passear a elegância e o spleen de Natal; assistir as regatas no rio Potengi ou aos espetáculos e filmes do Cine-theatro Carlos Gomes e do Politheama. Pela Av. Junqueira Ayres passavam muitos daqueles que tinham seus afazeres entre os bairros da Ribeira e da Cidade Alta. O seu calçamento defeituoso, além de um entrave à circulação na pequena capital, era a lembrança de um passado que não se queria para Natal; o passado expresso nos antigos topônimos – antiga Ladeira, Subida da Ladeira ou rua da Cruz – que designavam o único e difícil acesso, a “ladeira íngreme, escorregando como sabão depois das chuvas”,96 entre os dois núcleos primeiros que configuravam o espaço urbano da Natal do período colonial. Diria Cascudo:
“O antigo aterro colonial foi lentamente sendo substituído por pedras soltas, empedrado, trilha, calçada, paralelepípedo. Várias vezes o aclive foi rebaixado. A história termina quando o prefeito Omar O’Grady venceu o barro, tirou as pedras e vestiu a ladeira com o calçamento que resiste a tempo, água e esquecimento”. (Cascudo, 1947, p.148.).
A má qualidade do material rodante e de suas linhas não se restringia apenas a uma determinada fração da cidade e sim se alastrava por todos os bairros servidos pelos bondes. A falta de bondes em circulação, seja no Alecrim, seja no Tirol, forçava diversas vezes os habitantes dessas localidades a se deslocarem a pé. Dos oito carros em circulação, quatro se encontravam em estado de lastimável. Apesar disso, algumas posições ainda defendiam que a culpa não seria da Companhia, mas sim “da cidade, que está progredindo damnadamente! […]” (ARAUJO, 1935).
[…] Quanto ao movimento de bondes, nem é bom falar. A linha que vai do Natal Club ao Aero está e tal forma arruinada que, em certas occasiões, os vehiculos mais parecem embarcações no mar alto, balanceadas pela força das ondas. Ademais, succedem-se os descarrilamentos nas curvas da praça Pio X e avenida Hermes da Fonseca, dando lugar a que o transporte fique prejudicado por longas horas, como já hontem aconteceu, e a que, em consequencia, os menos abastados venham a pé até o centro da cidade, em epoca de chuvas constantes. Urge uma providencia immediata do sr. Gerente, devendo considerar que as más condicções dos referidos serviços não prejudicam apenas uma casa ou uma rua, mas um bairro inteiro. Parece proposito da Cia. Força e Luz não manter, como vinha fazendo até poucos dias, bondes na linha do Alecrim, após as sessões cinematographicas do cine theatro “São Pedro”. O resultado é que terminadas as sessões o publico terá que ficar todo o tempo á espera de um bond, que, naquella hora, geralmente entre 22 e 23 horas, é coisa rara naquellas paragens. […] (A FORÇA e luz e os habitantes do Tyrol, A Republica, Natal, 02 jul. 1935, p.01).
COSTUMES
Na fotografia observa-se Sophia Maranhão Tavares de Lyra (segurando uma bolsa e guarda-chuva na parte da frente), esposa de Augusto Tavares de Lyra, e sua irmã, e esposa de Sérgio Paes Barreto, ao seu lado, Dalila Rosa Maranhão Paes Barreto. Atrás foram fotografadas, da esquerda para a direita, Amélia Maranhão Tavares, esposa de Olímpio Tavares, Petronila Maranhão e Isabel Tavares Maranhão, viúva de Adelino Maranhão. As cinco mulheres representadas tinham vínculos com a rede que dominava a política local, anunciando que o cruzamento das famílias não se dava apenas nas questões políticas e na negociata das terras, os vínculos eram consolidados socialmente, como nesse passeio fotografado.
Olímpio Tavares era sujeito influente e participou de transações típicas de um mercado pessoal de terras. Sérgio Barreto era irmão de Pio Barreto, que atuou expressivamente também nesse mercado, conforme será ressaltado no próximo tópico. Essa imagem indica ainda as ambiguidades presentes no processo de modernização natalense. De um lado as senhoras da “boa sociedade” norte-rio-grandense, e, em segundo plano, no canto esquerdo, um popular, um trabalhador, segurando uma estrutura com a carga de rolos. De um lado as vestes pomposas das natalenses que queriam seguir a moda parisiense, conforme apontavam as capetadas de Lulu Capeta (Entre as quadras de Lulú Capeta que anunciam a imitação da moda parisiense, tem-se a seguinte: CAPETA,Lulú. Gravata ou toalha? A Republica, Natal, 23 set. 1901.), de outro um representante da população que sofria os dissabores do jogo social existente em Natal dos idos do século XX.
O PLANO GERAL DE 1924
A necessidade de um plano para a cidade colocava-se na ordem do dia uma vez mais, como o instrumento necessário para “transformar a nossa capital, dando-lhe os elementos de higiene e conforto que ela está a reclamar para que se torne um centro de atração de capitalistas e homens de negócios que aqui podem e precisam vir colaborar conosco na obra de constante progresso de nossa terra”, diria o governador José Augusto ao justificar a criação da Comissão de Saneamento de Natal (CSN). (Medeiros, J.A.B. (Mensagem de Governo do RN), 1924, p.35.). Instituída por meio do Decreto n.º 231, de 26 de abril de 1924, a CSN pode ser considerada, deste modo, pelo menos nos seus termos de criação, como o primeiro órgão de urbanismo da estrutura administrativa local.
O Plano Geral de 1924, elaborado pelo engenheiro Henrique de Novaes, era o primeiro plano de fato para a capital norte-rio-grandense. Novaes era formado pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, foi prefeito de Vitória ao longo de duas gestões, participou como coordenador na elaboração do Plano Geral de Vitória em 1917 e do Plano de Urbanização da mesma cidade em 1931. No Rio Grande do Norte, atuou na comissão federal enviada para analisar e combater os efeitos da seca no estado em 1904 e, a partir de 1921, dirigiu a seção das Obras Contra as Secas no estado, ver: DANTAS, George. Linhas convulsas e tortuosas retificações. Op. cit., p.108.
Apesar de não ter sido concretizado na íntegra, as propostas do Plano de 1924 foram referências importantes para os planos e reformas desenvolvidos posteriormente, sobretudo para o Plano de Sistematização de 1929. Em 1924 o estado passou por uma crise de suas receitas, devido a inundações provocadas por fortes chuvas que danificaram as estradas de rodagem prejudicando a produção salina e algodoeira, fazendo com que o governo não possuísse recursos para custear a aplicação do plano em sua totalidade. Somente o saneamento do Oitizeiro e a perfuração de determinados poços foram efetivados até novembro de 1925. Uma parte do sistema de abastecimento de água, de esgoto e de canalização de água pluvial proposto para o bairro da Ribeira foi concretizada nos anos posteriores. Ver: DANTAS, George. Linhas convulsas e tortuosas retificações. Op. cit, p.107-112.
A planta cadastral e topográfica desse plano, indicando o trajeto de trens e bondes à época, é de fundamental importância para a representação da cidade nesse período. As espacializações das enfiteuses realizadas ao longo da tese foram baseadas nessa planta. De acordo com Dantas, trata-se do primeiro documento cartográfico de Natal disponível desde o mapa do Atlas do Império do Brasil de 1864, já que a planta cadastral da cidade elaborada em 1908 não foi encontrada. Ver: DANTAS, George. Linhas convulsas e tortuosas retificações. Op. cit., p.111.
No início de 1939, com a finalização da primeira etapa do Plano Geral de Obras, os bairros centrais pareciam ter adquirido, sob muitos aspectos, uma imagem
renovada para seus moradores. A cidade já convivia com um maior número de automóveis circulando, embora a maioria da população continuasse a se deslocar
em bondes sempre lotados (FRANÇA. Aderbal. Dia de chuva. A República, Natal, 18 mar. 1939c.). O momento ainda era avaliado positivamente porque a cidade, apesar de tudo, prometia ficar cada vez mais nova.
REDINHA
Com a intensa ocupação da Redinha, os veranistas passaram a reivindicar melhores condições de infraestrutura. Dois problemas incomodavam os frequentadores desse trecho da costa marítima na segunda metade do século XX: um era a falta de energia elétrica, o outro era a falta de transporte. A luz elétrica só chegou à Redinha em 1959, por meio de gerador a diesel, instalado pelo governo Djalma Maranhão. A energia da Companhia de Paulo Afonso só chegou à praia em dezembro de 1968. Sobre o segundo problema, o transporte de Natal para a Redinha, o cronista Danilo (pseudônimo de Aderbal de França) escreveu:
E‘ uma questão antiga. Mas sempre palpitante. Bem a compreende quem já a observou pacientemente indo e vindo da Redinha nos meses de veraneio. E‘ o velho problema do transporte. E não somente do transporte. Tambem do embarque e desembarque do outro lado… Sofre-se na espera da saida do bote, sofre-se no preço, sofre-se nas surpresas das chuvas, sofre-se com as ―viradas‖ do vento, sofre-se pela ausencia de um ponto de atracação. Homens, senhoras, moças, crianças descem em braços de carregadores ou sobre pranchas inseguras ou sobre as aguas que avançam e recuam nas beiradas da praia (FRANÇA, A República, Natal, 25 abr. 1946, s/p).
ZÉ AREIAS
Zé Areias (José Antônio Areias Filho), barbeiro em diversos locais (na Tavares de Lira, na Travessa Venezuela, ver mapa), boêmio, carnavalesco. Irreverente, muitos episódios em que se envolveu pertencem ao folclore de Natal.
Em nosso observatório, assistimos de tudo um pouco. Esta semana, às onze horas, quando o comércio cerrava as portas para o almoço, desabou uma chuva torrencial. Não temos nada com a chuva e em matéria de inverno, somos neutro, pois não queremos encrencas com os sertanejos que desejam chuva para plantar suas lavouras e tampouco desejamos complicação com os donos de olaria, fabricantes de telhas, tijolo, cal e fazedores de carvão, inimigos do inverno, que atrapalha os seus negócios… Mas a chuva neste dia nos interessou, pelo simples fato do barbeiro Zé Areias haver tirado o paletó e a camisa e nu da cintura pra cima, tomar um autêntico banho de chuva, daqueles que nos fazem recordar a meninice. E Zé Areias, satisfeito, sapateando, resfolegando, corria de um lado para o outro, até que encontrou o esgoto da sapataria A Fidalga arrebentado, metendo-se de baixo do cano furado, tomando um banho formidável, que pelo menos serviu para curtir a ressaca… Sapataria “A Fidalga”: tudo indica que Djalma se enganou, pois esta sapataria se localizava na Cidade Alta. Na Dr. Barata havia diversas sapatarias. Qual teria sido a do banho na chuva de Zé Areias?
A HISTÓRICA SE REPETE
As últimas ocorrências demonstram que a capital enfrenta um problema crônico de infraestrutura e drenagem, que já dura quase sete décadas. É o que registra o arquivo da TRIBUNA DO NORTE. São diversas reportagens, notícias, entrevistas, notas e imagens que demonstram a vulnerabilidade da Cidade do Sol diante das chuvas. A reportagem da TN mostra como as páginas do jornal mais antigo do Rio Grande do Norte vêm contando essa história.
Os trechos foram transcritos conforme escrito na época. Acompanhe:
1956: alagamentos e comércio parado
Vinte e quatro horas de chuvas foram suficientes para alterar o dia da capital potiguar. Ruas foram interditas e o comércio foi paralisado. “As precipitações pluviométricas se não atingiram uma intensidade de maior nota, pelo menos contribuíram para que a vida na cidade, sofresse uma completa alteração, provocando, inclusive, na zona baixa da Ribeira, alagamento total da praça Augusto Severo, repetindo-se o velho drama da ausência de galerias pluviais em condições de pleno funcionamento”, publicava a TN em 29 de junho de 1956.
#SAIBAMAIS#Em 2022, a vida natalense comercial também foi afetada. Na manhã de quinta (7), o piso do Camelódromo do Alecrim cedeu e provocou a interdição de três bancas. No momento do incidente, as bancas estavam fechadas e ninguém se feriu. No local, abriu-se um buraco e produtos de uma banca foram engolidos, como capinhas e aparelhos celulares.
1965: calamidade é causada por falta de planejamento urbano
Na edição de 5 de maio de 1965, a TN trazia como destaque a reportagem “Falta de estudos e serviço sem planejamento são causas de Natal ser hoje cidade alagada”. O texto apontava os desafios que a Prefeitura teria dificuldade para reparar todos os prejuízos das chuvas na cidade, que assim como hoje, também estava sob decreto de calamidade pública. “A situação da cidade é, verdadeiramente, de calamidade pública, por conta das chuvas ultimamente caídas e em virtude dos derrubamentos, alagamentos, descalçamentos de ruas provocadas pelas enxurradas”, dizia o texto.
Na Rua João Carlos, uma cratera de quatro metros se abriu e prejudicou a rede de esgoto, além de impedir a passagem dos pedestres. “Afóra êsse trecho da João Carlos outras ruas foram [danificadas], casos da Rio Branco, nas proximidades do Baldo. Deodoro, também nas proximidades do Baldo, Rio Branco, nas proximidades da Ribeira e Juvino Barreto, nos limites com a Pista”, contava a reportagem na época.
1973: desabamentos e crateras enormes
Em 25 de julho de 1973, a Ribeira registrava uma cheia histórica. A água deixou pedestres e veículos pequenos ilhados, impossibilitados de trafegar da Rodoviária até o cais do porto. O largo da Praça Augusto Severo também ficou completamente alagado. Do Teatro Alberto Maranhão ao antigo Grande Hotel, uma lagoa de aproximadamente 40 centímetros de altura se formou. A Rua Gustavo Cordeiro de Farias, em Petrópolis, ficou intransitável.
Na Alexandrino de Alencar, quintais viraram piscinas e em Ponta Negra, todo o calçamento foi comprometido. “O problema de galerias pluviais – em Natal – continua sendo um dos maiores desafios ao prefeito Jorge Ivan tendo em vista o que está acontecendo, antes mesmo do início da estação chuvosa”, dizia a TN.
O crescimento desordenado da cidade já era motivo de preocupação. “Enquanto a cidade cresce lentamente, os problemas de urbanização se avolumam e as administrações continuam inconscientes do que acontecerá, especialmente em consequência das chuvas, como por exemplo o que se refere ao Mirassol, onde por falta de escoamento das águas, diversas casas foram inundadas na parte baixa do terreno daquele núcleo residencial”, publicava a TN em julho de 1973.
1974: Baldo amanhece com enorme buraco
Assim como em 2022, o Viaduto do Baldo e a Avenida Rio Branco já registravam buracos, alagamentos e desabamentos de muros. Foi assim em 22 de maio de 1974, quando a não conclusão de uma obra ocasionou o desabamento de parte da estrutura. “Para o sr. Geraldo Pinho Pessoa, superintendente do DNOS, a causa da enorme cratéra provocada pelas águas no Baldo foi devido a não conclusão do canal”, publicou o jornal.
1975: desabamentos de barracos, novas crateras e cidade inundada
O período de inverno em 75 castigou bairros de diversas regiões. Ribeira, Rocas e Alecrim ficaram intransitáveis e barracos foram derrubados. Alguns moradores da capital tiveram que lidar ainda com um agravante inusitado. Isso porque uma fábrica de vinagre e temperos foi atingida pela força da água, o que fez com que o caldo de pimenta chegasse às casas. “Rebolaram para cá todo o caldo de pimenta. Ninguém aguentava mais”, reclamava Antônia da Silva à época.
“A impossibilidade de escoamento das águas, que se acumulavam em regiões mais baixas da cidade acabaram por ocasionar desabamentos em diversas favelas, onde os barracos são considerados muito frágeis, geralmente feitos de barro e madeira, além de abrir enormes buracos em ruas asfaltadas. Na Favela do Japão, no final da Rua dos Paiatis, Alecrim, cinco barracos desabaram. Outros dois em Brasília Teimosa, e nas Rocas, a situação também não era das melhores”, contava a matéria.
1982: destruição em todos os bairros
Buracos, calçamentos desfeitos, ruas e casas inundadas e protestos marcaram aquele 13 de abril de 1982. A reportagem denunciava que os estragos eram inversamente proporcionais às providências tomadas para tentar contornar os problemas. Na Rua 25 de Dezembro, nas proximidades do antigo Hotel dos Reis Magos, a chuva invadiu várias residências, provocando tumulto por parte dos moradores, que tiveram seus móveis, eletrodomésticos e outros objetos destruídos.
“Apavorados com a situação os moradores telefonaram para a Sumov [Secretaria de Obras da época] solicitando providências. Um trator foi enviado para arrastar a areia trazida pelas águas das chuvas, mas no momento em que os serviços iam ser iniciados chegou uma ordem da prefeitura mandando interromper os trabalhos, porque, segundo a ordem os reparos deviam ser feitos pela Caern que estava realizando serviços no local, e não pela Prefeitura. Revoltados com a medida, os moradores saíram às ruas portando cartazes nos quais pediam providências para a situação”, dizia trecho de reportagem.
Mais tarde, em junho de 1982, a TN mostrava que nenhum bairro da capital havia escapado dos estragos causados pelas chuvas. O jornal criticava obras sem planejamento que foram incapazes de escoar todo o volume de água. Os bairros de Mãe Luiza e Quintas, na zona Oeste, foram os mais afetados: cerca de 50 famílias ficaram desabrigadas.
1985: Natal, Cidade do Sol – só do Sol
Em abril de 1985, em caderno especial, a TN retratava a “Anatomia do Caos”, que não aguentava “uma chuvazinha” sequer. A publicava destacava o contraste entre a alegria do sertanejo com a prosperidade da lavoura no interior com a destruição na capital. “Natal está provando por a mais b, que não tem (ainda) condições de suportar uma chuva maior. Assim como dois e dois são quatro, Natal é uma cidade que não tem, ainda hoje não tem, infra-estrutura necessária para as águas. Não suporta uma garoazinha fina, tipicamente paulistana, daquelas que começam e terminam num piscar de olhos”, trazia a reportagem.
O periódico listou dez exemplos de como a capital “não aguenta uma chuvazinha”. Entre os exemplos estavam favela do Vietnam, Rua do Motor, Hotel Reis Magos, Quintas, Centro, entre outros.
e foi no dia foi 28 de Julho de 1998, uma terça-feira. Começava em Natal uma chuva aparentemente normal daquelas que duram poucas horas, mas esta durou ininterruptas 40 horas. O resultado, não era pra menos, foi desastroso.
O índice pluviométrico chegou a cerca de 380 mm. Pra você ter uma ideia, o comum para época, para todo o mês de Julho, de acordo com o Instituto Meteorológico de Recife (PE), eram de 218 mm.
Além das seis pessoas que morreram, pelo menos 3.000 ficaram sem abrigo. Depois de quase 2 dias chovendo a água que vinha do céu só deu uma trégua no final da manhã de quinta-feira, dia 30.
A Prefeitura decretou estado de calamidade pública na cidade. Cerca de 500 famílias foram desabrigadas e removidas pelo Exército para escolas e creches públicas, ginásios de esportes e casas alugadas pela prefeitura, nas zonas norte, leste e oeste de Natal.
Na entrada da cidade, o tráfego ficou interrompido por quase 48 horas. Um deslizamento de terra no vilarejo Rio dos Índios, em Ceará Mirim (30 km a oeste de Natal), provocou o soterramento de várias casas e a morte de seis pessoas. Segundo os moradores, o número de casas soterradas chegou a 70.
1998: chuva de 236 mm leva Natal à calamidade
Em 24 horas, entre 29 e 30 de julho de 1998, o volume de chuva de 236 milímetros deixou um rastro de destruição e muitos desabrigados na capital. Natal ficou sob estado de calamidade pública, decretado pela então prefeita Wilma de Faria. O caos foi evidente nos bairros de Lagoa Nova, Cidade da Esperança, Planalto, Petrópolis, Bom Pastor, Igapó e Mirassol.
“A correnteza forte derrubou o muro de duas residências na Rua das Orquídeas. Na Rua José Gonçalves, Lagoa Nova, um caminhão tentou passou e terminou enguiçando no meio de muita lama. O motorista teve que sair do local a nado. Os moradores da rua estão ilhados, sem poder sair de suas casas”, contava a página 12 da TN de 30 de julho de 1998.
2006: chuvas alagam loteamentos
As chuvas de 110 milímetros que caíram na capital durante o feriadão da Semana Santa escacaram mais uma vez os problemas históricos da cidade. O aguaceiro tirou o sossego dos moradores dos loteamentos Jardim Primavera, Aliança, Jardim Progresso, Vale Dourado, Libanês e José Sarney, na zona Norte.
2014: tragédia em Mãe Luiza
Enquanto a capital natalense sediava a partida entre México e Camarões pela Copa do Mundo de 2014, uma cratera com mais de dez mil metros quadrados engoliu imóveis e deixou dezenas de desabrigados em Mãe Luiza e Areia Preta. Novamente, os mesmos problemas elencados por autoridades e especialistas foram os causadores do deslizamento de terra. Além das fortes chuvas, ocupação irregular, lixo acumulado em galerias e rompimento de tubulações contribuíram para o acidente.
Assim registrou a TN: “Além das 100 famílias de Mãe Luíza e Areia Preta atingidas pelas chuvas do fim de semana, a Prefeitura do Natal contabilizou, até o fechamento desta edição, outras 38 famílias desabrigadas em diversos pontos da cidade. Nas proximidades da Lagoa São Conrado, no bairro Nossa Senhora de Nazaré, zona Oeste, foram 21 famílias atingidas, além das 10 famílias do entorno da Lagoa do Preá, na zona Sul; cinco famílias da comunidade do Jacó, zona Leste; e outras duas do loteamento Novo Horizonte, na zona Norte. A Secretaria Municipal do Trabalho e Assistência Social (Semtas) lembra que o cadastramento está em andamento e que esse número pode crescer. A Prefeitura pede aos atingidos e não cadastrados que recorram à Secretaria para registrar seu caso”.
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