O combate a malária em Natal durante a Segunda Guerra Mundial
Durante a Segunda Guerra Mundial, a malária foi o principal problema sanitário que as tropas norte-americanas enfrentaram nos diversos continentes, sendo responsável por quinhentas mil internações hospitalares. Na invasão da Sicília pelos Aliados, entre julho setembro de 1943, os norte-americanos registraram 21.482 internações hospitalares devido a ataques de malária, em contraste com as 17.375 internações provocadas por ferimentos de batalha.
Em dezembro de 1942, o índice de incidência de malária nas forças militares no sudoeste do Pacífico foi de seiscentos casos para cada mil soldados norte-americanos. Em algumas bases do Pacífico, este índice, em 1943, chegou a atingir mil casos por ano para cada mil soldados.
Foram as necessidades militares da Segunda Guerra Mundial que estimularam o governo e a indústria química norte-americanos a aplicar recursos nos estudos sobre a malária. O desafio de enfrentar esta doença levou o Conselho de Produção de Guerra dos Estados Unidos a investir em pesquisas, drogas para combater os sintomas e vetores da doença e técnicas ambientais de controle.
Drogas
Este esforço levou ao aperfeiçoamento da atebrina e à pesquisa de outras drogas de prevenção dos sintomas da doença. Um outro produto do esforço da indústria química norte-americana, desenvolvido durante a guerra, revolucionou as técnicas de combate à malária: o diclorodifeniltricloroetano, ou DDT.
O DDT é um poderoso inseticida residual que, aspergido em superfícies interiores (paredes internas de residências), atua por vários meses e é extremamente eficaz na eliminação de mosquitos adultos. Estes e outros produtos foram testados tanto no teatro de guerra, os campos de batalha europeus e asiáticos, quanto no Brasil.
Pesquisas
Assim como na Sicília e no Pacífico, a malária também foi a principal preocupação sanitária dos norte-americanos instalados em bases e aeroportos militares no Norte e Nordeste brasileiro durante a Segunda Guerra Mundial. Para sanear estas regiões e as cidades onde se localizavam as bases militares norte-americanas, criou-se, em 1942, o Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp).
Antes mesmo da assinatura formal do acordo militar com os Estados Unidos autorizando a instalação das bases, duas equipes de médicos militares percorreram o Nordeste e o Norte do país, analisando as condições sanitárias daquelas regiões e sugerindo políticas de saúde que preservassem os soldados das endemias locais.
Entretanto, estes estudos não foram feitos para orientar políticas de saúde para a população civil, mas para detectar quais doenças seriam ameaçadoras para as tropas norte-americanas no Brasil. O sanitarista norte-americano Dunham (1941) foi muito objetivo em seu relatório, ao afirmar que, de todas as doenças existentes no Brasil, malária, disenterias, febre tifóide e doenças venéreas, eram as únicas que efetivamente constituíam ameaças para os militares que viriam dos Estados Unidos, sendo que a malária foi apontada como a doença mais perigosa para as tropas. A malária era endêmica em praticamente todos os estados do Norte e Nordeste e foi considerada um “problema militar” nos relatórios mencionados.
O controle de malária em Natal e o Anopheles gambiae
O extremo oriental do Nordeste brasileiro foi considerado pelos Aliados como de importância estratégica fundamental na defesa das Américas. Natal, por sua posição geográfica, foi a cidade escolhida para sediar o mais importante aeroporto militar construído pelos norte-americanos em território brasileiro. Josué de Castro (1969, p. 19) afirma que, durante um certo período de tempo, em Natal estava localizado “o maior aeroporto do mundo”; por lá transitavam soldados e equipamentos militares para a África, Ásia e Europa. O número de soldados norte-americanos estacionados em Natal era relativamente pequeno no início de 1942, mas cresceu bastante quando, em novembro daquele ano, o exército dos Estados Unidos estabeleceu na cidade uma agência subsidiária — separada de Recife — de seu quartel-general para o Atlântico Sul.
Ao contrário do que foi avaliado para Belém, a malária não foi considerada um perigo sanitário sério para as tropas norte-americanas estacionadas em Natal. Dunham (1941, pp. 30, 39) diagnosticou que a disenteria amebiana seria muito mais ameaçadora para as tropas do que a malária. Em contraste com os estados ao sul do Rio Grande de Norte e ao norte do Ceará, ele concluiu que “a incidência de malária em Natal e seus arredores é baixa”. Dunham avaliava que o trabalho da Fundação Rockefeller e do Serviço de Malária do Nordeste na erradicação do Anopheles gambiae era responsável pelo baixo índice de incidência de malária no Rio Grande do Norte. E as medidas utilizadas para eliminar o gambiae teriam contribuído para a diminuição da incidência de outros vetores. Além deste fator, Dunham também responsabilizava o clima pelos números modestos da malária. Natal “está localizada numa área de grandes dunas, a região é relativamente seca, e seu clima, em decorrência de ventos marinhos, é comparativamente frio”.
O relatório dos técnicos confirmava a constatação do relatório Dunham de que não havia nenhuma ameaça grave na cidade, fato que foi comprovado pelos indicadoresde 1942. Neste ano, nenhum caso de malária foi registrado entre o destacamento de marines acampados em Natal (Silva et al., 1942).
Curiosamente, apesar dos 24 casos de norte-americanos tratados de malária em Parnamirim entre agosto e outubro de 1942, nenhum caso foi registrado entre os soldados brasileiros. Os médicos norte-americanos concluíram, contudo, que a maior parte dos casos de malária ocorreu entre militares em trânsito por Natal, vindos de Belém. Em dezembro de 1942, não havia nenhum caso de malária entre as tropas estacionadas em Parnamirim, norte-americanas ou brasileiras.
Uma outra ameaça de epidemia, porém, trouxe ansiedade ao Nordeste e quase transformou-se num incidente diplomático entre o Brasil e os Estados Unidos. O grande movimento de tropas, aviões e navios vindos da África criou uma possibilidade ameaçadora: a reintrodução, no Brasil, do mosquito africano Anopheles gambiae. O gambiae, “o mais eficiente vetor de malária do mundo”, é autóctone da África tropical e é um excepcional transmissor da doença “em função de seus hábitos domésticos e de sua preferência por sangue humano” (Soper, 1977, p. 201).
Em março de 1930, o entomologista norte-americano Raymond C. Shannon, que trabalhava no Brasil para a Fundação Rockefeller, surpreendeu-se ao encontrar alguns exemplares de Anopheles gambiae em Natal. Após exaustivo inquérito, concluiu que a invasão do Brasil por aquele mosquito se fizera através de navios de uma companhia francesa que operava, desde 1928, um serviço de correio entre a Europa e a América do Sul. Navios velozes eram capazes de cruzar o Atlântico sul, de Dakar, no Senegal, até Natal, no Brasil, em três dias.
Violentas epidemias irromperam no Ceará e no Rio Grande do Norte em 1938 e 1939, provocando mais de 140 mil casos de malária e um número de mortes estimado entre 14 mil a vinte mil.
O governo brasileiro contratou a Fundação Rockefeller para administrar um serviço especialmente criado para erradicar o gambiae do Brasil. Dirigido por Fred Soper, o Serviço de Malária do Nordeste (SMN) investiu dois milhões de dólares neste projeto e, no ápice do seu trabalho em abril de 1940, empregava quatro mil pessoas. O último gambiae foi identificado pelo serviço em setembro de 1940, porém a procura do mosquito continuou a ser feita no Ceará e no Rio Grande do Norte por mais 18 meses. A espécie foi erradicada através do esquadrinhamento de todos os seus focos de reprodução, nos quais se espargiu uma substância química chamada verde-paris.
Em 1942, Natal transformou-se num ponto crucial da rota de ligação entre os continentes, e o gambiae voltou a ameaçar o Brasil. Quando o primeiro avião da Panamerica, decolado na África ocidental, aterrissou em Natal em outubro de 1941, uma fêmea morta da espécie gambiae foi encontrada a bordo pelos funcionários do SMN. Entre outubro de 1941 e junho de 1942, membros do SMN identificaram vários exemplares de gambiae adultos em sete aviões que pousaram em Natal, provenientes da África. O perigo de reinfestação do Brasil era evidente.
Em setembro de 1943, as notícias sobre a presença do Anopheles gambiae no Nordeste tornaram-se um problema político, ameaçando as relações entre o Brasil e os Estados Unidos. Naquele mês, o SNM encontrou cinco gambiae vivos em Natal: dois na base naval brasileira e três outros em casas vizinhas à base. O alarmante nesta notícia estava no fato de que, pela primeira vez, a inspeção sanitária encontrava o mosquito fora de um avião militar.
O relatório preparado pelo médico R. M. Taylor, da Fundação Rockefeller, confirmou que, em 51 vôos realizados da África ocidental a Natal, entre setembro de 1941 e setembro de 1943, 130 exemplares de gambiae foram identificados pelas autoridades sanitárias brasileiras, dos quais 23 mosquitos encontrados vivos.
Como os gambiae vivos foram encontrados a 13 quilômetros do aeroporto de Parnamirim, o diretor da Fundação Rockefeller acreditava ser improvável que os mosquitos fossem trazidos de avião, inclusive porque “a desinfecção de aviões realizada pelas autoridades sanitárias brasileiras era meticulosa”. Taylor (1943, pp. 1-3) concluiu, então, que os mosquitos vivos encontrados na base naval foram trazidos por navios da marinha norte-americana.
A imediata ação em Natal do SNM impediu a reinfestação do Nordeste pelo Anopheles gambiae. Uma zona de proteção foi estabelecida em torno da base naval, onde os mosquitos vivos haviam sido encontrados. Esta operação incluiu a fumigação de todas as casas localizadas num raio de vários quilômetros da base e uma sistemática procura por qualquer indício deste anofelino.
Apesar da busca não ter acusado nenhum sinal de reprodução do mosquito, o governo brasileiro convidou a Fundação Rockefeller para investigar o caso. De novembro de 1943 a março de 1944, um grupo de 250 técnicos visitou 267 localidades no Rio Grande de Norte, não encontrando nenhuma evidência da presença do anofelino.
O episódio da ameaça de reinfestação pelo gambiae revela as tensões existentes entre brasileiros e norte-americanos instalados no Brasil, durante a Segunda Guerra Mundial. Portanto, comparando as diferentes versões a respeito deste episódio, podemos concluir que, ao expressar sua opinião, o observador naval norte-americano provavelmente estava seguindo a “prática aparentemente utilizada por Washington de considerar norte-americanos medíocres melhor qualificados para trabalharem aqui (no Brasil) do que medíocres ou bem qualificados brasileiros” (Walmsley Jr., 1944).
Na medida em que o relatório do observador naval foi divulgado após a publicação do relatório Taylor, pode-se supor que o observador naval estava ciente da suspeita deste médico de que os anofelinos encontrados vivos na base naval foram trazidos por navios norte-americanos. Se isto é verdade, o observador naval provavelmente estava tentando ocultar a responsabilidade da marinha norte-americana com relação à ameaça de reintrodução do Anopheles gambiae no Brasil.
O episódio da presença norte-americana no Norte e Nordeste do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial e as políticas de controle de malária executadas nas cidades que acolheram as bases militares dos Estados Unidos mostram que, em situações extremas como a guerra, uma doença como a malária deixa de ser ‘apenas’ uma doença de populações pobres para transformar-se em questão de segurança político-militar.
O interesse político despertado pela necessidade de controle da malária pode também significar avanços no conhecimento médico-sanitário sobre a doença em questão. Este é o caso dos estudos dos anofelinos da Amazônia e do Nordeste realizados pelo Sesp e pelo SNM, como também da descoberta denovas drogas e técnicas de combate à doença e aos seus vetores, como a atebrina e o DDT. O episódio de Natal mostra também os conflitos entre brasileiros e norte-americanos, provocados por preconceitos, nacionalismos e desconfiança política.
Combatendo nazistas e mosquitos: militares norte-americanos no Nordeste brasileiro (1941-45) por André Luiz Vieira de Campos.