Zila Mamede: prateleiras, poesias e o mar
Expressão máxima da poesia potiguar do século XX, foi lida e admirada por grandes poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, e João Cabral de Melo Neto. Bibliotecária, técnica em contabilidade, diretora de bibliotecas no Estado, entre elas a Biblioteca Central Zila Mamede por um período de 21 anos, Zila da Costa Mamede estava sempre semeando novos caminhos em sua vida. Não tinha medo de desafios, mesmo que alguns deles, como organizar o acervo e escrever um livro sobre Luís da Câmara Cascudo, tenham exigido muito de si e feito com que se questionasse sua produção poética.
Origens
Apesar de seu pai ser de Caicó, e seu avô materno de Jardim do Seridó, cidades do interior do Rio Grande do Norte, as duas famílias se juntaram no estado da Paraíba, onde Zila Mamede viria a nascer.
Zila Mamede era paraibana, mas seu coração era do Rio Grande do Norte. Nasceu em 15 de setembro de 1928, em Nova Palmeira/PB, município fundado por seu avô e por seu padrinho de batismo. Os irmãos Zila e Saly foram alfabetizados pela mãe Elydia Mamede. Zila aos 3 anos ouvia embevecida a voz doce da mãe que contava estórias e lia poesias sob a luz de lamparina. Em seus mergulhos aéreos Zila encontrava os avós e o primeiro irmãozinho que ela nem chegou a conhecer.
Então era uma festa de abraços, cirandas e peraltices pelos céus dos sonhos. E, só se desvaneciam com os primeiros raios a transpassar as pálpebras da menina que, até então, passava a ouvir os galos e passarinhos saudando o colorido e iluminado raiar do sol em um novo dia. Assim Zila iniciou em casa, sob o cuidado amoroso da mãe, o seu processo de alfabetização, tendo a poesia de Olavo Bilac como base para o seu passaporte ao mundo mágico das letras e da criação literária.
Aos cinco anos mudou-se com a família para Currais Novos, no Rio Grande do Norte, onde seu pai teve uma fábrica beneficiadora de algodão. Chega a Natal no ano de 1942, no período da Segunda Guerra Mundial, com a idade de 14 anos, trazida pelo pai que foi atraído pela chegada dos americanos e a conseguinte construção da base aérea de Parnamirim. O acontecimento se deu logo pós ter concluído o primário em Currais Novos.
Inicia seus estudos no Colégio Imaculada Conceição, em 1943, no Curso Básico de Contabilidade, como aluna interna. Como técnica em contabilidade exerceu suas primeiras atividades nessa profissão enquanto se dedicava aos interesses pelas letras. E foi após concluir os estudos secundários, que ela começou a se interessar por literatura. Para o quê muito contribuiu seu padrinho, o culto Francisco de Medeiros Dantas, com quem ela conviveu quando passou algum tempo entre as capitais João Pessoa e Recife.
A descoberta
Até os 21 anos de idade a futura poetisa Zila Mamede nada sabia de literatura. Nessa época, sua maior preocupação era resolver um conflito: ir ou não ir para o convento. E sem o recurso de aconselhamento de terceiros, devido às circunstâncias muito particulares de sua vida nesse então, ela logo se viu escrevendo desesperadamente.
Daí que descobriu a poesia, assunto, aliás, interdito no colégio em que estudava. Numa etapa posterior, descobriu as peculiaridades das palavras, ao lidar com a dificuldade de acomodar a palavra “repolho” ao “Soneto para a mocidade holandesa”.
Moça tímida, como ressalta Tarcísio Gurgel, ao sair do internato Zila Mamede percebe-se como adulta e passa a atuar no comércio natalense datilografando notas fiscais em uma empresa na Ribeira.
Jornalismo
Uma faceta desconhecida de Zila Mamede é a de jornalista. Pouco se sabe de sua colaboração e de sua atuação no jornalismo, ao contrário do que se observa da sua trajetória enquanto poeta, bibliotecária e pesquisadora.
Zila se torna colunista interina, cronista e repórter bissexta no jornal potiguar Tribuna do Norte e, posteriormente, redatora do jornal potiguar Diário de Natal. Além disso, chegou a ser correspondente internacional do jornal carioca O Globo e colaborou com os suplementos literários de jornais de Recife, Rio de Janeiro e São Paulo.
Diante desse contexto, relacionamos as publicações da autora no jornal Tribuna do Norte entre os anos de 1950 e 1952. Acreditamos que a poeta praticava um Jornalismo híbrido, um Jornalismo autoral.
Zila escreve uma coluna com notícias sociais e culturais. É nesse momento que começa a publicar algumas poesias de sua autoria na coluna.
Nessa ocasião, acontece um episódio interessante, que é o desentendimento de Zila com Antonio Pinto de Medeiros, intelectual conhecido à época. “Ele faz uma crítica em sua coluna no jornal dizendo não ser possível uma pessoa conseguir publicar toda semana uma poesia e manter sua produção com qualidade”, revela Gurgel. Esse desentendimento é desfeito tempos depois, quando, numa festa de São João, eles se encontram e dançam juntos. Zila aproveita para questionar o porquê de ele ter feito o comentário e Antonio Pinto de Medeiros responde que enxergava nela um talento tão grande que Zila precisava parar de publicar ansiosamente e passar a ter um zelo maior na construção de seu verso. Após esse fato, eles se tornam amigos.
Colhendo frutos
Com um maior cuidado com sua produção, Zila Mamede amadurece poeticamente e passa a publicar em vários jornais do país, colhendo frutos de seu trabalho ao ser reconhecida pelo seu talento. Formou-se em Biblioteconomia pela Biblioteca Nacional com bolsa de estudos conseguida por intermédio de Manuel Bandeira; no retorno a Natal, criou o sistema de bibliotecas do estado. Especializou-se em administração de bibliotecas nos Estados Unidos.
Em 1953, lança seu primeiro livro – Rosa de Pedra – publicado pela Imprensa Oficial do RN. Após a publicação da obra, Zila passa a trocar cartas com importantes escritores brasileiros, entre eles Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Paralelo à profissão, publicou Salinas, em 1958, e O arado, no ano seguinte.
Iniciou sua carreira em 1954, quando assumiu o cargo de Auxiliar de Biblioteca da Biblioteca do Instituto de Educação do Rio Grande do Norte (hoje Atheneu Norte-Riograndense). No final do mesmo ano recebe o Certificado do Curso Intensivo de Biblioteconomia, expedido pelo Instituto Nacional do Livro (INL), através do Programa de Assistência Técnica às Bibliotecas Brasileiras.
No ano de 1955 é aprovada no vestibular para do curso de Direito da Universidade do Rio Grande do Norte, porém o tranca, pois fora aprovada no vestibular para o Curso de Biblioteconomia da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Entre 1955 e 1956, cursou Biblioteconomia no Rio de Janeiro, trabalhou como Auxiliar de Biblioteca do Instituto de Matemática Pura e Aplicada do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e ainda fez uma especialização nos Estados Unidos.
Retornando a Natal, reassume seu cargo no Instituto de Educação do Rio Grande do Norte; em seguida é nomeada Bibliotecária da Sociedade Cultural do Brasil – Estados Unidos- SCBEU, em Natal (1957). Em 02 de maio de 1959 é nomeada Chefe do Serviço Central de Bibliotecas (SCB) da Universidade do Rio Grande do Norte, onde planeja, implanta e organiza o Serviço Central de Bibliotecas, coordenando as atividades das Bibliotecas das Faculdades Isoladas (1959–1974). No mesmo ano, elabora e coordena o primeiro curso para Auxiliares de Bibliotecas, na antiga Faculdade de Filosofia de Natal e assumiu a Diretoria de Documentação e Cultura da Prefeitura Municipal de Natal.
Zila também trabalhou como professora do curso intensivo de Biblioteconomia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em Natal (1959); reorganizou a Biblioteca do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (1959); assumiu no Setor de Análise de Documentos, da Divisão de Documentação da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), Recife (1962).
Em março de 1964 inicia Pós-Graduação no Curso de Mestrado em Biblioteconomia da Universidade de Brasília-UnB e se responsabiliza pela orientação de alunos na disciplina Bibliografia (nível de Graduação) como instrutor-bolsista da UnB e deixa como resultado de seu Mestrado o “Catálogo de Obras Raras do século XVI a XVII: pertencentes à UnB”.
No ano de 1968, coordena o Levantamento das Bibliotecas para a Ciência & Tecnologia das Universidades do Nordeste e Órgãos de Pesquisa Correlatos, para a criação de um Serviço de Informação e Documentação Técnico Científica da Região (Convênio CNPq/SUDENE).
Após O Arado, a escritora deixa um pouco a poesia de lado e embarca no projeto grandioso de organizar a bibliografia do pesquisador e historiador potiguar Luís da Câmara Cascudo. Esse trabalho afastou-a por algum tempo da poesia e a fez questionar a qualidade de sua produção. A avaliação levou a poeta para outros caminhos.
De 1969 a 1972 coordena a implantação da Biblioteca Pública Estadual Câmara Cascudo. Em 1970, a poeta lança o livro Luís da Câmara Cascudo: 50 anos de vida intelectual, 1918-1968: bibliografia anotada.
Em 1974 planeja, organiza e instala o acervo básico necessário ao funcionamento dos cursos da UFRN, representando a Biblioteca Central (antes Serviço Central de Bibliotecas da UFRN) e é nomeada Diretora da Biblioteca Central da UFRN, ficando no cargo até 20 de março de 1980, quando se aposenta.
Ela passa a fazer experimentos de linguagem. O Exercício da Palavra, publicado em 1975, mostra um trabalho ousado, misturando longas poesias, como Flamengol, que possui cento e dezoito versos e remete a transmissões radiofônicas, ao poema A Ponte, bastante curto.
Segundo Tarcísio Gurgel, a partir de então Zila Mamede se preocupa em reunir a poesia dela e inicia um projeto publicado em 1978 com nome de Navegos. Nesse livro, ela reúne as poesias Rosa de Pedra, Salinas, O Arado, Exercício da Palavra e um inédito, chamado Corpo a Corpo.
Em 02 de maio de 1983, a convite do então Governo do Estado, José Agripino Maia, assume a Coordenação da Biblioteca Pública Estadual Câmara Cascudo. Em 1984 implanta o Sistema de Bibliotecas do Estado “Caixas Estantes” em convênio FJA/INL
Em dezembro de 1984, a poeta publica um outro livro, chamado A Herança, no qual escreve sobre seus pais, alguns irmãos e outras pessoas queridas eleitas por ela, como Drummond. Esse livro é publicado enquanto ela trabalha entre 1976 e 1985 no projeto da obra sobre João Cabral de Melo Neto (1942-1982), que só é publicado após sua morte, denominado Civil Geometria. A Herança é quase uma despedida da autora, que morreu afogada em 16 de dezembro de 1985, na praia do Meio, em Natal.
Obras
Zila Mamede foi bibliotecária e poeta, obteve destaque nas duas atividades. Como bibliotecária, é o principal nome da biblioteconomia do Rio Grande do Norte, participou de cursos nos grandes centros brasileiros e até mesmo fora do Brasil. Como poeta, rompeu o jejum potiguar após a efervescência de Jorge Fernandes; publicou obras de poesia e técnicas, tais como: “Rosa de Pedra” (1953), “Salinas” (1958), “O arado” (1959), “Luís da Câmara Cascudo: 50 anos de vida intelectual, 1918-1968: bibliografia anotada” (1970, 2 volumes, 3 Tomos), “Exercício da palavra (poesia 1959/1975)” (1975) e “Corpo a Corpo” (1978). No ano de 1978 foi também lançado o livro “Navegos”, que reúne as cinco obras anteriores. “Catálogo das Publicações da Fundação José Augusto, 1965-1984” (1984) e “A Herança” (1984).
O poeta Manuel Bandeira considerou seu primeiro lançamento, “Rosa de Pedra”, um dos melhores livros de versos brasileiros. Por “Salinas”, Zila recebeu o prêmio “Vânia Souto Carvalho”, em Recife. Já “O Arado” teve prefácio de Luís da Câmara Cascudo. A poetisa também se dedicou à pesquisa sobre as obras de João Cabral de Melo Neto e Câmara Cascudo.
A poesia de Zila Mamede ganhou contornos oníricos e audiovisuais no curta-metragem “Pegadas de Zila”, produzido em 2011. Com roteiro e direção do potiguar radicado no Rio de Janeiro, Valério Fonseca, e trilha sonora do cantor e compositor Dudé Viana, o filme tece colcha poética de retalhos, tendo como protagonista a atriz Rosamaria Murtinho, na pele de uma mulher que revive a poesia existencialista e passeia pelas memórias da poetisa, que sonhava conhecer o mar. O curta tem pouco mais que 11 minutos de duração, foi rodado em Natal e no Rio de Janeiro. Participou de vários festivais e ganhou alguns prêmios.
Morte
É impossível não relembrar esta cena ao falar de Zila Mamede: de licença das atividades profissionais, a paraibana radicada em Natal acordou feliz, cantarolando uma música de Roberto Carlos, artista que geralmente ou nunca estava entre um de seus preferidos do toca discos. Tomou café, vestiu o maiô e partiu, para nunca mais voltar. A dolorida lembrança acompanha muitos momentos na vida de Ivonete, irmã da poetisa Zila Mamede.
Zila Mamede morreu afogada em 13 de dezembro de 1985, enquanto nadava na Praia do Meio, situada na costa litorânea, próxima ao Forte dos Reis Magos, em Natal, como fazia quase diariamente. Sobre tal episódio funesto, assim se expressou o acadêmico Diógenes da Cunha Lima, no artigo que mencionei no início desta crônica:
“Devota de Santa Luzia, no dia a ela consagrado, em um 13 de dezembro, saiu da sua residência, no edifício coincidentemente chamado “Caminho do Mar”, para ir à praia do Forte. Não se sabe como, mas seu corpo navegou por sobre os arrecifes, atravessou o Potengi e aportou na praia da Redinha. O mar que fora o seu mais sensível tema, foi para ela arrebatamento, fascinação, fantasia, êxtase. O corpo intacto, identificado por amigos, entre os quais a escritora Eulália Duarte Barros, estava coberto de sargaço.”
A morte de Zila Mamede foi anunciada em todos os veículos de comunicação da cidade e de outros estado, manifestando a enorme perda. A matéria publicada nesta TRIBUNA DO NORTE, em 14 de dezembro de 1985, dizia: “Sexta-feira 13 de dezembro, fatal para as letras e a política do Estado. Morre Zila Mamede… Ontem pela manhã, como fazia todos os dias, saiu cedo de sua residência, no edifício ‘Morada Caminho do Mar’, na rua Seridó, para uma caminhada na Praia do Forte onde, em seguida, costumava fazer algum tempo de natação… Mais tarde seu corpo foi encontrado na Praia da Redinha”
Acervo na BCZM
Fundadora do Sistema de Bibliotecas da UFRN e diretora por 21 anos da Biblioteca Central da UFRN, Zila Mamede possuía um extenso acervo com cartas, livros e fotografias. Parte desse material pode ser consultada na Sala Zila Mamede, um setor criado na BCZM em 2016 para disponibilizar consulta ao acervo da poeta.
Os documentos e livros começaram a chegar à BCZM em 1985, após a morte de Zila Mamede. A família começou a organizar o acervo da poeta, e em 1990, encaminhou parte desse material para a Biblioteca Central Zila Mamede (BCZM), que recebeu o nome da escritora no final de 1985.
“Essa coleção ficava junto aos acervos especiais, no Setor de Coleções Especiais. Em 2015, nós fizemos o projeto para criar esse espaço e em março de 2016 inauguramos uma sala para disponibilizar esse material dentro da Biblioteca”, explica a bibliotecária Tércia Marques.
A Sala Zila Mamede possui um acervo com 1.213 títulos, sendo que alguns estão ainda sendo restaurados. Dentre os manuscritos, são 1.037, desde certidão de nascimento, passando por rascunhos de livros, até cartas da escritora.
É um rico acervo, importante para a UFRN e para todo o Estado, pelo que Zila representa. Estão disponíveis na Sala vários documentos, como cartas, certidões, registro de nascimento e fotos, tudo disponível para pesquisa”, revela a diretora da BCZM, Magnólia de Carvalho Andrade.
Depois que enviou os livros da escritora, a família começou a encaminhar também os manuscritos. “Zila se correspondia com muita gente, entre elas Carlos Drummond de Andrade. As cartas eram, na maioria delas, datilografadas. Nós temos aqui no acervo tanto as cartas que ela enviava, as cópias em carbono, como as que ela recebia”, frisa Tércia Marques.
Segundo ela, a maioria dos documentos, desde a certidão de nascimento de Zila Mamede aos relatórios de trabalho, cartas e documentos oficiais, está quase tudo catalogado. Como algumas cartas são manuscritas, houve o cuidado para fazer os resumos desse material, assim como a transcrição. O próximo passo é digitar todas elas para que facilite a pesquisa da obra de Zila.
O espaço conta também com alguns objetos usados por Zila quando era diretora da BCZM, a exemplo de agendas de trabalho, da mesa onde trabalhava e carteiras funcionais da poeta. Uma máquina de datilografar que está na sala também foi utilizada pela escritora e está exposta, assim como outros itens de seu uso pessoal.
“A ideia é que o pesquisador de Zila Mamede faça um tour ao adentrar as memórias dela aqui nesta sala. Temos os livros que ela leu, os que ela escreveu, os que já foram escritos sobre ela”, acrescenta Tércia.
A Sala fica aberta ao público, das 7h30 às 22h. Não é permitido fotografar, pois tudo está protegido pelo direito autoral, mas os visitantes podem consultar todo o material disponível no local.
Assista abaixo o programa Memória Viva, da TVU, com a autora, exibido em 1982.
O Mar
No dia 07/11/2017, o acadêmico e até então presidente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte LRN, advogado, poeta e escritor Diógenes da Cunha Lima, publicou artigo no Blog Ponto de Vista, do jornalista Nelson Freire, rememorando e homenageando a insigne Zila Mamede, a quem catalogou como uma das mais importantes poetas do Brasil.
Logo no início do seu texto, o articulista assim se expressou: “A sua perfeição poética, de forma e invenção, não é menor do que a de Cecília Meireles, Adélia Prado ou Hilda Hilst. Os seus poemas foram elaborados com engenho e arte. Contudo, não ganhou fama nacional, ainda que reconhecida e altamente admirada por nossos grandes poetas.”
E, no final do artigo, o acadêmico arrematou: “A obra da Poeta do Mar não é transmitida e nem estudada nas escolas, não ganhou a merecida dimensão nacional. Mas, não pode ser esquecida neste Rio Grande, estado em que desejava ter nascido e ao qual legou o melhor da sua organização literária e a sua criatividade poética.”
Pode, sim, haver certa ausência de maior divulgação da profícua obra da Zila Mamede. Isso, no âmbito nacional, pois em terras potiguares ela tem sido lembrada, se dando seu nome à Biblioteca Central da UFRN. A Biblioteca Central Zila Mamede possui hoje uma sala com objetos, livros e cartas da poetisa, localizada no Setor de Coleções Especiais. E seu nome também foi dado a escolas estaduais.
Zila escrevia com sutileza sobre suas paixões, mas abordava ainda temas relacionados ao sertão nordestino. E era claro seu fascínio pelo mar, que ela havia conhecido em 1939, numa viagem a Recife. Nestes poemas, abaixo, ela fala do mar como parte das memórias dos lugares em que viveu.
Poemas
Nos três poemas que transcrevo a seguir (o último deles, um magnífico soneto), se nota bem o marcante fascínio da poetisa pelo mar. E alguns versos sabem mesmo até como certo prenúncio do seu trágico fim. Poderia ter sido uma tragédia anunciada?
ELEGIA (duas estrofes)
Nem descubro mais caminhos,
já nem sei também remar:
morreram meus marinheiros,
minha alma, deixei no mar.
Pudessem meus olhos vagos
ser ostras, rochas, luar,
ficariam como as algas
morando sempre no mar.
Meus antigos horizontes,
Navios meus destroçados,
meus mares de navegar,
levai-me desses desertos,
deitai-me nas ondas mansas,
plantai meu corpo no mar.
Lá, viverei como as brisas.
Lá, serei pura como o ar.
Nunca serei nessas terras,
que só existo no mar.
CANÇÃO DO AFOGADO
Nos olhos de cera
dois pingos de vida,
nas marcas da vida
a noite pisou.
A face tranquila
bordada de sombras
– são restos de estrelas
que o ceu apagou.
Os dedos lilases
não pedem mais sol;
e os lábios desfeitos
perderam seus gestos,
calaram seus sonhos
que a morte levou.
Cabelos de musgos
lavados de espumas
caminha o afogado
que o mar conquistou.
PARTIDA
Quero abraçar, na fuga, o pensamento
da brisa, das areias, dos sargaços;
quero partir levando nos meus braços
a paisagem que bebo no momento.
Quero que os céus me levem; meu intento
é ganhar novas rotas; mas os traços
do virgem mar molhando-me de abraços
serão brancas tristezas, meu tormento.
Legando-te meus mares e rochedos,
serei tranqüila. Rumarei sem medos
de arrancar dessas praias meu carinho.
Amando-as me verás nas puras vagas.
Eu te verei nos ventos de outras plagas:
juntos – o mar em nós será caminho.
Mar morto
Parado morto mar de minha infância
sem sombras nem lembranças de sargaços
por onde rocem asas de gaivotas
perdendo-se num rumo duvidoso.
Pesado mar sem gesto, mar sem ânsia,
sem praias, sem limites, sem espaços,
sem brisas, sem cantigas, mar sem rotas,
apenas mar incerto, mar brumoso.
Criança penetrando no mar morto
em busca de um brinquedo colorido
que julga ver no mar vogando.
Infância nesse mar que não tem porto,
num mar sem brilho, vago, indefinido,
onde não há nem sonhos navegando.
Corpo a corpo
Pasto branco
potro bravo
corpo a corpo
corre o certo
tempo incerto
de um corisco
Pasto e cobra
rosto franco
na empreitada:
febre e fogo
nesse jogo
de encontrar-se
Pasto e potro
rasto e sono
em breve trato:
rosto acorda
laço e corda
desatados
Pasto grave
tenso rosto:
cobra-cobra
se consome
na empreitada
re-presada
Pasto franco
rosto breve
fogo e risco
fome e riso
no improviso
desse jogo
Pasto bravo
potro branco
corpo a corpo:
na campina
o potro: a crina
engalanada
Frustração
O poeta, em verde sonho desposado
perdeu-se na fumaça, descontente.
Onde o gesto, onde a musa permanente
fincou raiz? em solo devastado?
Palavras. Só palavras. Concentrado
o pensamento voga, de repente,
por mares de salina, indiferente
ao poeta, àquele sonho evaporado.
Fantasmas de mil coisas na retina:
um grito azul – nas sombras da neblina,
inconsequente flor a soluçar.
Em vestes de loucura embevecida,
o poeta, a muda face desprendida,
o morto sonho verde atira ao mar.
O PRATO
Na casa escura, o prato campinava
dimensão magra de conviva e pasto.
Se lume de candeia reetia,
naquela toalha, o barro inerte branco
uma dor de menino sacudia
desarvorada lua se fazia
nas cercas, no curral espantamento
em que o menino reinventava reino
onde aboiavam prados. Inltrava-se
na mesa neutra e vã o medo infante:
os dedos cavalgados por fantasmas
serenamente despedaçam luas.
O RIO
Um rio adormecido em cada infância,
rio seco ou de enchente, intempestivo
rio que não cresceu – riacho riba.
Mas o que conta de nós é mesmo o rio
correndo na memória com seu jeito
de rio, sua boca chã de rio,
a força de ser rio e ser caminho
de rio, noite assombração de rio,
chamado ser em oculto chão de rio
e de seu pranto fez nascer cacimbas.
Alguns livros sobre Zila:
ALVES, Alexandre. Silêncio, mar: a poesia de Zila Mamede nos anos 50. Natal: Sebo Vermelho, 2006.
AQUINO, Graça. A memória como evocação:um estudo crítico da obra O Arado, de Zila Mamede. Natal: A.S. Editores, 2005.
GALVÃO, Cláudio. Zila Mamede em sonhos navegando. Natal: FUNCART /Prefeitura da Cidade de Natal, 2005.
Outros
Curta metragem em homenagem à poeta: “Pegadas de Zila” (2011)
Tese de doutorado (em andamento) “Esta marca de suor numa canção – a poesia de Zila Mamede sob o viés da redução estrutural”, de Carlos André Pinheiro (UFRN)
Dissertação de Mestrado “O arado e a modernidade na poesia de Zila Mamede: A construção da lírica telúrica erguida em novos alicerces” (2011), Janaína Silva Alves (UERN)
Links:
http://www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/?page_id=597
http://www.memoriaviva.com.br/zila/
http://www.jornaldepoesia.jor.br/zmamede.html
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/catalogo/zila_vida.html
Fontes: Blog 7 faces, UFRN, Brechando, Centro Acadêmico Zila Mamede, Ponto de Vista, Periódicos da UFC, Blog A Crítica, Tribuna do Norte, Blog Letras, Literatura Potiguar,