Natal capital não há tal
O núcleo que deu início à Cidade do Natal foi erigido em 1599, em um ponto alto da região, entre o rio Potengi e o Oceano Atlântico. O pequeno povoado, que já nascia com foros de cidade, foi criado por decreto de Felipe II, numa tentativa de assegurar a posse da região, então cobiçada pelas outras nações europeias.
Associada a essa empreitada, foi construída uma Fortaleza, defendendo a barra do rio Potengi, então principal via de acesso a Natal e ao interior mais próximo. Com sua função administrativa e militar por excelência, a cidade se desenvolveria lentamente no decorrer de três séculos, pois estava isolada com o cerco de dunas, lagos, mangues e arrecifes. Com esta situação o seu status de capital foi contestada. Esta é sua história…
Amsterdã
Medeiros Filho (1981:64-65), citando documentos holandeses, demonstra que, já durante o período holandês (1633-1654), houve uma transferência da capital da capitania do Rio Grande. Os documentos comprovam que as autoridades batavas demonstravam essa intenção a partir de 1638.
Em 1646, essa transferência já havia sido realizada, segundo as mesmas fontes documentais. A capital da capitania do Rio Grande fora transferida para uma localidade às margens do Potengi.
Segundo Medeiros Filho, ela se localizava no atual município de Macaíba, e foi ela que recebeu o nome de Amsterdã. Não se sabe exatamente a razão da transferência. Mas a extrema precariedade de Natal, agravada pela ocupação, pode ter contribuído para essa decisão.
De qualquer forma, a mudança estava mais relacionada, ao que parece, a questões de ordem militar, e não tanto de ordenação do território por questões de natureza comercial ou de reforço da capital existente. Essa mudança parece ter sido um acontecimento efêmero, sem maiores consequências, tendo em vista que a nova capital não deixou, pelo que se tem conhecimento, quaisquer vestígios materiais de sua existência. A referência é importante, contudo, porque mostra a natureza específica das motivações com os projetos de mudança de capitais no século XIX, bem diferentes das que ocorrem no caso ora citado.
A documentação manuscrita do período da ocupação holandesa do Rio Grande (1633-1654) confirma vigorosamente a existência de uma Cidade Nova, como aparece na Figura abaixo (1665). Além dos escritos do historiador Barléu, que transcrevemos acima, cartas e despachos lavrados por outras autoridades da mesma nacionalidade evidenciam providências efetivamente tomadas para a construção dessa nova cidade, em substituição a Natal. Ela ficaria na confluência do Rio Potengi com o Jundiaí (MOURA, 1986, p. 106-107). Pedro Moura, baseando-se em outros autores, como Hélio Galvão, cita vários documentos holandeses que apontam efetivamente para a existência dessa cidade nova, inclusive a citação do próprio Barléu. Johan Neuhof, por exemplo, se refere a essa nova cidade – denominada de Amsterdam – assim como a Natal, nos seguintes termos:
Acima do Rio, há uma cidade denominada Amsterdam. Seus habitantes vivem da pesca, da produção de farinha e do plantio de fumo […] perto da aldeia de Natal e do Forte dos Reis Magos passa um rio conhecido por rio da cruz que nasce de um pequeno lago no Rio Grande (NEUHOF apud MOURA, 1986, p. 107).
Joan Nieuhof e Adriaen van der Dussen também informaram sobre Natal, já ocupada pelos holandeses. O conselheiro Dussen afirma que Natal não existia mais: a capitania “já teve uma cidadezinha chamada cidade de Natal, situada a uma légua e meia do Castelo Keulen, rio acima, mas está totalmente arruinada” (Adriaen van der Dussen, 1947, págs. 78-79.) e sobre este informe escrevia depois o panegirista de Nassau, Gaspar Barleu ser “a Vila de Natal de aspecto triste e acabrunhador pelas suas ruínas e vestígios de guerra” (Gaspar Barleu, MCMXL, pág. 128.). Em vista disso, na várzea do Potengi, confluência do rio Jundiaí, foi edificada a capital holandesa da capitania, a cidade de Amsterdam, onde funcionou a Câmara de Escabinos (Joan Nieuhof, 1951, págs. 59-60).
Quando os holandeses saíram (1654), era a desolação. Em 1673, dezembro, o capitão-mor Antônio Vaz Gondim e os oficiais da Câmara pediam a Sua Majestade uma esmola para as obras da matriz, em vista da pobreza dos moradores e ainda porque – entendiam eles – concluída, a igreja passaria a funcionar como pólo de atração para que se fixasse os moradores: “acabando-se a igreja se povoaria a cidade” (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1951, págs. 203 – 205.).
A ideia de se fundar uma “nova cidade”, mencionada por Barléu, resulta da precariedade de Natal, situação agravada certamente com a conquista da capitania pelos batavos, que inclusive levou ao abandono da cidade por parte dos seus poucos moradores. Entretanto, para além dessas referências documentais holandesas, não temos conhecimento de qualquer outra fonte ou vestígio, por exemplo, arqueológico, que confirme que essa cidade nova realmente existiu. Deve ter sido algo efêmero. A rigor, teria sido o único período em toda a história da cidade em que ela perdeu o seu status de capital.
O principal núcleo urbano era Natal que, no início do século XVII, contava com aproximadamente 40 prédios e tinha uma população de aproximadamente 130 habitantes. Decorridos quase dois séculos de colonização, no início do século XIX, a população da capital ainda era de aproximadamente 700 habitantes.
Questionamentos
Natal, durante sua fundação, atendeu bem a sua função geopolítica de assegurar a posse do território. Na verdade, ela possuía e ainda possui atualmente essa importância, inclusive em nível internacional. No entanto, com o desenvolvimento do comércio no século XIX, evidencia-se a fragilidade de sua localização, escolhida em outro momento e para outros fins.
Desde o início do século XIX já se mencionava o isolamento da capital. A cidade se encontrava isolada pelos atributos naturais do sítio onde foi fundada, limitada pelo Rio Potengi, pelo cordão de terreno dunar circundante e ainda pela disposição de diversos recifes na entrada do porto, elementos que dificultavam a comunicação da capital do Rio Grande do Norte com o território do interior. Definitivamente, o porto não estava nas condições ideais para ser a porta de entrada e saída do comércio da província, mas era o melhor que havia em todo o litoral norterio-grandense e ele determinou, sob o aspecto geográfico, a escolha e a permanência de Natal como capital da província e posteriormente do estado.
A situação de isolamento de Natal incomodava as elites da cidade, que reclamavam, por meio dos periódicos locais, a iniciativa de medidas urgentes em prol de sua comunicação, tanto com os demais núcleos da província, quanto com as outras capitais regionais como a Cidade da Paraíba e o Recife.
A primeira proposta de mudança de capital acontecida na província do Rio Grande do Norte aconteceu em 1855. A cidade candidata à nova sede política era São José de Mipibu, que havia adquirido certo desenvolvimento econômico e por isso uma representação política proeminente na assembleia provincial. Durante a ascensão do açúcar no litoral do Rio Grande do Norte, o município era uma das zonas açucareiras mais produtivas dessa cultura.
No biênio de 1854-1855 da assembleia legislativa provincial, o município foi representado por pelo menos dois deputados: Antônio Basílio Ribeiro Dantas e José Seabra de Melo. O primeiro já havia presidido a câmara municipal de São José de 1841 a 1845 e tornar-se-ia vice-presidente da província em 1860. Sua família possuía boa quantidade de terras na região. O segundo foi responsável por um projeto, em 17 de Julho de 1855, que mudaria a capital da Província para a cidade de São José que passaria a se denominar Cidade do Mipibu. (CASCUDO, 1955, p. 330) Não se acharam maiores referências a esse projeto de lei, o que leva a crer que ele não teve maiores desdobramentos.
Três anos depois, após o surgimento do entreposto de Guarapes, esse debate é retomado e a mudança seriamente considerada. A princípio não havia recursos para a mudança e acabou-se por investir em Guarapes como um entreposto que poderia vir a ser ou não no futuro – dependendo do ponto de vista do administrador e suas alianças políticas – a nova capital da província.
Em 1861, o presidente Figueiredo Junior se posiciona contra a mudança da sede administrativa, por acreditar que não havia porto em condições mais favoráveis que o de Natal. O presidente Luiz Barbosa da Silva, em 1867, coloca em pauta mais uma vez a localização primitiva da cidade como um entrave para o desenvolvimento da província. O presidente Silvino Carneiro da Cunha descartaria essa hipótese em 1870, mas seria retomada dois anos depois, em um contexto bem diverso. O presidente via na lei que autorizava a construção de uma ferrovia ligando Natal a Ceará-Mirim e uma ponte de ferro no “Rifoles” a saída para o estado de isolamento da cidade.
A falta de integração gerada pela carência de vias de comunicação prejudicava, sobretudo, a economia da província e de Natal, que assistia as demais capitais se desenvolverem. Em 1874, Natal não contava com sequer uma estrada carroçável em boas condições que a comunicasse com as demais cidades e zonas produtivas do Rio Grande do Norte e isso implicava em um progresso material pífio, bem como, em uma cidade ainda baseada nos moldes ditos “coloniais”, nessa época, sinônimo de atraso.
No relato do Capitão-mor José Francisco de Paula Cavalcanti Albuquerque, de 1807, a cidade estava isolada pelo rio e pelas dunas. Em sua viagem de 1810, Henry Koster também detectou as dificuldades de acesso a Natal por causa das dunas, no trecho entre Natal e a Vila de São José, atual São José de Mipibu, situada cerca de 30 km ao sul de Natal. (KOSTER, 1979: 86-87).
Esse discurso se intensifica principalmente a partir de meados do século XIX, ao mesmo tempo em que, e não por acaso, começa a se discutir a possibilidade de mudança da capital para outras localidades, mais propícias do ponto de vista da interligação com o interior e, por conseguinte, para o desenvolvimento do comércio.
A partir de 1855, se sucedem as discussões, a favor e contra a mudança da capital, para localidades como São José de Mipibu, mas também para Macaíba e o porto de Guarapes (Rodrigues 2006. P 65-81), essas duas últimas localidades em pleno desenvolvimento graças ao comércio ao longo do Rio Potengi, em detrimento de Natal. Nesses debates se destaca o fato de que o Rio Salgado era visto como um obstáculo que precisava ser vencido, se a cidade quisesse incrementar o seu comércio com o interior e, assim, manter o seu status de capital.
Na década de 1870, em um contexto nacional extremamente favorável para a construção de ferrovias, essa e várias outras leis são aprovadas, concedendo privilégios de cons-trução de estradas de ferro na província.
Dentre essas concessões, somente o trajeto de Natal a Nova Cruz seria levado adiante nos anos seguintes, mas a primeira concessão, que previa a ligação de Natal ao vale do Ceará-Mirim, geraria polêmica nos poderes locais da província a respeito de uma provável mudança de capital.
Problema novo, o da mudança da capital. O quadro que o comendador Henrique Pereira de Lucena, presidente da Província, traçou perante a Assembleia Legislativa Provincial em 5 de outubro de 1872 é desalentador: a província, que ao tempo das guerras holandesas servia de celeiro à cidade do Recife, mandava agora “aos talhos de sua capital número mais que limitado de bovino, magro, cansado e por preço elevadíssimo”, importando farinha das províncias limítrofes e até do Rio de Janeiro.
Atribuía o presidente Lucena entre as principais causas “desse estado desanimador em que se acham as fontes de produção e riqueza da província à péssima posição topográfica de sua capital, o pior lugar, sem contestação alguma, de toda a província, quer como cidade igual a outras do interior, quer como sede principal da civilização, comércio, indústria e artes”. Exibia o retrato da cidade, sufocado pelas dunas, apertada pelo rio, sem possibilidade de expandir-se, e indicava a única opção para o desenvolvimento (Relatório do presidente Henrique Pereira de Lucena à Assembléia Legislativa Provincial, 5.10.1872, Rio de Janeiro, Tip. Americana, 1873, págs. 36-37.).
Em seu relatório precitado, o engenheiro Feliciano Francisco Martins renova a tese da mudança, quase com os mesmos fundamentos do presidente Lucena:
“Duas opiniões, há longo tempo emitidas e infelizmente nenhuma delas realizada até hoje, se apresentam como meios apropriados para combater estes obstáculos:
1º – A construção de uma ponte, em frente a esta cidade, e o rompimento dos morros de areia por uma estrada calçada e de fácil acesso.
2º – A mudança da capital para a margem esquerda do Rio Potengi, para o lugar denominado – Carnaubinha, fronteiro a Guarapes, e distante 3 léguas desta cidade.
Embora esta segunda opinião prevaleça sobre a primeira, cumpre entretanto, confessar que a mudança rápida de uma capital já estabelecida e que dispõe de edifícios públicos, satisfazendo mais ou menos aos seus fins, para um outro lugar inabitado, acarreta consigo despesas incalculáveis, joga com muitos sacrifícios quer públicos, quer particulares, e enfim, com os destinos da província” (Relatório cit., págs. 40-41).
Do porto de Guarapes, fundado por Fabrício Gomes Pedroza, em 1860, dizia Manoel Ferreira Nobre, em 1877, que “é um dos arrabaldes mais importantes da capital” (Manoel Ferreira Nobre, 1971, págs. 40-41). E a Lei Provincial nº. 659, de 10.6.1873, deu um passo no caminho da transferência da capital. Sem mencionar a mudança, autorizou o governo a tomar as seguintes medidas:
-Desapropriação dos lugares Guarapes e Carnaubinha, a partir da preamar de um até um meio quilômetro, pela margem direita do rio Jundiaí; e pela margem esquerda até seis quilômetros;
-Construção de uma ponte de madeira unindo os dois lugares;
-Isenção de imposto predial (décima urbana) por dez anos, para os prédios que fossem edificados nos dois lugares.
Era uma tentativa de restaurar a velha Amsterdam dos holandeses.
As Estrada de ferro
A estrada de ferro, a partir de 1870, se torna uma reivindicação recorrente nos discursos da imprensa e das elites políticas, devido ao isolamento geográfico de Natal.
As redes de transporte – primeiramente a Estrada de Ferro de Natal a Nova Cruz, posteriormente incorporada pela inglesa Great Western Railway Company, assim como a Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte, todas passando ou se iniciando em Natal e no seu porto – resultaram de uma escolha deliberada da elite político administrativa da província e, a partir de 1889, do estado do Rio Grande do Norte, no sentido de reforçar o papel de Natal como capital, ao integrá-la com o interior. As estradas de ferro finalmente transpõem o Rio Potengi a oeste e superam o obstáculo representado pelas dunas ao sul, em ambos os casos diminuindo o isolamento da capital em relação ao interior do Rio Grande do Norte e a outros estados.
A construção dessas linhas e das primeiras rodovias faz com que a capital norteriograndense passe por um processo de reafirmação da sua função como centro principal administrativo e, principalmente, como núcleo de intercâmbio comercial do estado.
Dentre essas concessões, somente o trajeto de Natal a Nova Cruz seria levado adiante nos anos seguintes, mas a primeira concessão, que previa a ligação de Natal ao vale do Ceará-Mirim, geraria polêmica nos poderes locais da província a respeito de uma provável mudança de capital.
A princípio, a estrada e a ponte foram vistas como a grande saída para o estado de penúria dos cofres provinciais e uma via que implementaria o transporte para Natal, tornando seu comércio forte e seu aspecto condizente com seu foros de capital. A pressuposta perenidade da capital da província em Natal seria posta em cheque, visto que a construção da via férrea obedecia a rígidos preceitos técnicos, bem diferentes da relativa adaptabilidade dos tradicionais caminhos de terra feitos até então.
Seria pautado nas recomendações técnicas desse novo meio de transporte que Henrique Pereira de Lucena, em seu relatório de 1872, resgata a proposta de mudança da capital para um local de frente ao porto de Guarapes, na outra margem do rio. Para o Presidente, a linha de Natal a Ceará-Mirim deveria ser analisada mais detidamente e a proposta de mudança de capital “não devia ser esquecida, mas sim tomada na maior consideração, e sujeita a detido e flectido exame.”
O principal objetivo era transferir a capital, usando-se para isso da mais variada argumentação, inclusive de desconstrução da pressuposta centralidade de Natal. A localização geográfica de Carnaubinha, como era conhecida a planície alagadiça, poderia reunir as características necessárias para desempenhar bem o papel de nova capital da província, tanto em nível regional como local. Por um lado, as várias estradas que confluíam para a cidade a tornariam uma praça comercial que integraria o fluxo de mercadorias vindas de várias partes da província e até de outras vizinhas. Por outro lado, o sítio ocupava um lugar plano e regular, com abundância de recursos naturais imprescindíveis para uma capital, como água potável, material construtivo e terrenos cultiváveis para alimentação da população.
Essa proposta de mudança aparece juntamente com o esboço de um novo orçamento para a Estrada de ferro Natal-Ceará-Mirim, indicando que as despesas cairiam consideravelmente caso a capital fosse mudada para essa planície, pois os custos com a construção da ponte e obras de adaptação da linha seriam bem menores.
O presidente Bonifácio Francisco Pinheiro da Câmara, em 1873, apóia a mudança da capital e reforça ainda mais a preservação do importante comércio desenvolvido na cabeceira do rio. Segundo ele, a construção de uma ponte em frente à capital, além de demandar um sistema de estradas caríssimo, por causa dos extensos areais que circundavam a capital, ainda fecharia “para assim dizer o rio ás embarcações de certa ordem, que se destinarem a carregar productos de Macahiba e outros povoados, que pelas suas posições topographicas attrahem quasi todos os generos do interior.”
Pelas modificações de algumas cláusulas do contrato em 1875, também fica visível que a companhia era favorável à mudança da capital. Ao que parece, ela não dispunha do capital suficiente para levar a obra à frente, caso Natal fosse o ponto de partida dos trilhos.
A presidência da província parecia disposta a transferir a capital. A lei nº 659, de 10 de junho de 1873, desapropriava terrenos em Guarapes e Carnaubinha “com fundo de um até um e meio kilometros a partir da prea-mar sobre uma extensão pela margem direita do rio ‘Jundiahy’ até um e meio kilometros e pela margem esquerda até seis kilometros”. A lei ainda autorizava construir uma ponte de madeira no mesmo rio. As despesas com a desapropriação e a construção da ponte deveriam ser cobertas pelas verbas destinadas às obras públicas, autorizando igualmente créditos suplementares caso não fossem suficientes os recursos desse fundo. O terceiro artigo indica claramente que havia intenções de estimular o adensamento urbano da região, através do estabelecimento de residências e casas comerciais, embora não houvesse um plano sistematizado de ocupação.
No entanto, nem todos concordavam com essa empreitada e, curiosamente, seria da cidade mais importante do interior da província que partiriam as críticas mais severas a esse plano de mudança da capital.
O apoio de Mossoró para Natal
A grande causa da mudança seria a maior proximidade de Carnaubinha de CearáMirim, o que encurtaria e baratearia o trajeto da estrada de ferro. Mas na opinião do jornal O Mossoroense, as inovações tecnológicas deveriam concorrer para a manutenção da capital no local de origem e seu fortalecimento, já que havia uma considerável soma de investimentos particulares e públicos em Natal. Para ele, a capital estava bem situada, precisando apenas dos investimentos necessários para comunicá-la com as zonas produtivas.
O jornal faz em seguida uma comparação entre os custos necessários para a mudança da capital, juntamente com as indenizações perda do patrimônio público acumulado e os custos da ferrovia do Ceará-Mirim, caso partisse de Natal. O autor conclui que o projeto da ferrovia partindo de Natal seria muito mais viável, e que os custos relativos à ponte e aos trilhos a mais não superariam nem de perto os gastos com a construção de uma nova capital e as indenizações e perdas decorrentes dessa empreitada.
A quem interessaria a mudança? O periódico chega mesmo a indagar se a empreitada não seria fruto de especulação imobiliária dos donos de terrenos de Carnaubinha, situados em um charco alagadiço, com valores muito reduzidos por não se prestarem ao cultivo. Por intermédio dessa colocação, o autor passa a questionar o papel de uma cidade na economia da região, partindo do caso específico de Carnaubinha.
Esse anseio de criar uma nova cidade completamente desvinculada da imagem de atraso e inércia de Natal, onde o comércio fosse dinâmico e vibrante, aos moldes das grandes metrópoles européias, fez com que o jornal adotasse o irônico apelido de “Nova Londres” para Carnaubinha. A alusão à principal urbe da maior potência comercial oitocentista era a imagem mais apropriada para revelar a inadequação desse projeto à realidade da província, da qual o comércio dependia: uma frágil economia agro-exportadora baseada em monoculturas.
Destarte os debates fervorosos, a capital não mudaria de local e nem mesmo a estrada de ferro do Ceará-Mirim seria construída nesse período. Apesar da canalização do rio Ceará-Mirim ter sido concluída em 1874, e dois anos depois ter sido concedida a construção de um engenho central no vale, a estrada não iria se concretizar durante o império e muito menos durante o período áureo da cana-de-açúcar.
Apesar de não ter sido concretizada, a Estrada de Ferro do Ceará-Mirim, durante seu planejamento, levantou importantes discussões sobre o território e a capital e a pressuposta perenidade de Natal como capital foi visivelmente abalada. Se havia por um lado um desejo de começar uma nova capital ex-nihilo, era inegável que a relação pessoal entre certos atores influenciou em muito nessa empreitada.
Os donos dos terrenos de Carnaubinha, os herdeiros de Fabrício Gomes Pedrosa, já falecido no período, realmente tinham ligações com os presidentes de Província, como apenas insinuou o Mossoroense. De fato, eles tiveram ganhos com a empreitada, já que receberam indenizações pela desapropriação de terrenos em Carnaubinha e isenção de impostos de construção por um prazo de dez anos.
Isso vem mostrar o quão forte foi a rede que se estruturou em torno do transporte fluvial, embora a capital não estivesse bem posicionada nessa rede de cidades. As administrações continuaram a buscar essa centralidade, mas agora em um novo ciclo de investimentos baseado nas ferrovias. Em suma, ao longo do século XIX, o isolamento da cidade do Natal preocupou constantemente as autoridades, que queriam reforçar o seu papel de cidade-capital, debilitado por esse isolamento.
Reafirmação da capital
Uma das maneiras mais evidentes desse esforço político se verificou na busca, pela classe dirigente, de uma determinada organização do território e de sua rede urbana ainda em formação que os subordinasse principalmente do ponto de vista econômico, à cidade-capital. Assim, a produção da província e depois do estado – especialmente a cana-de-açúcar e o algodão e seus derivados, que estão em plena ascensão na segunda metade do século XIX – deveria ser escoada por Natal, cidade cujo porto deveria ser o elo entre o interior e outras partes do país e do mundo, por meio do sistema ferroviário que então se implantava.
O sistema ferroviário, cujas primeiras experiências se iniciam a partir de 1881, foi implantado, portanto, de tal forma a subordinar economicamente o território e, por conseguinte as demais localidades, à cidade do Natal. É o caso do vale do Ceará-Mirim, zona produtora do açúcar, que tinha no porto de Natal seu ponto de escoamento.
Só depois de construída é que se certificou que a Natal-Nova Cruz estava fora da zona açucareira mais rica. Sem falar que ao término da construção a região cortada pelos trilhos estava assolada pela seca e parcialmente despovoada por conta de epidemias. O trajeto mal elaborado da ferrovia Natal-Nova Cruz fará com que os engenheiros ferroviários da NNC façam estudos territoriais no intuito de corrigi-lo. Para que as ferrovias gerassem lucro eles deveriam selecionar e incentivar determinados fluxos em detrimento de outros.
Esse reordenamento ou, melhor dizendo, o reforço dessa subordinação territorial, uma vez que Natal já era capital desde sempre, foi em grande parte possível graças à implantação da ferrovia, que desestabilizou o sistema anterior de comunicação fluvial pelo rio Potengi e com isso sufocou cidades que dele se beneficiavam, como Macaíba, gerou disputas acirradas com a elite política da cidade de Mossoró, curiosamente contrária à mudança de capital, e permitiu o investimento no porto e na cidade do Natal, outras facetas desse mesmo processo.
Na verdade, é importante frisar que havia uma intrínseca relação entre o aumento do volume de mercadorias transportadas pelas estradas de ferro e a demanda por um porto que permitisse a entrada de embarcações de grandes calados, capazes de exportar a crescente produção. Era necessário que o porto de Natal pudesse absorver aquilo que era produzido no estado, deslocando assim mercadorias que anteriormente eram escoadas por portos de outras capitais. Essa convergência de rendas à capital apenas era possível por meio da implantação de vias férreas e de um porto compatível, obras que durante a década de 1910 se encontravam em andamento subsidiadas pelas verbas da Inspetoria de Obras Contra as Secas (BRASIL…, 1912). Delineava-se, dessa maneira, uma rede urbana hierarquizada, encabeçada por Natal.
O porto e a ferrovia estavam indissociavelmente relacionados, fazendo parte de um mesmo e único sistema. Esse terceiro momento termina simbolicamente em 1916, ano em que se conclui a construção da ponte de ferro sobre o Rio Potengi, um marco em uma luta no mínimo centenária de transposição do obstáculo representado pelo Rio Potengi. A linha de ferro e sua ponte pareciam ser, no discurso da elite, a grande solução desejada para o futuro do estado do Rio Grande do Norte.
A questão da mudança de capital não será mais retomada pela administração local, e as estradas de ferro serão utilizadas para construir deliberadamente a hegemonia de Natal, em meio à entrada do capital inglês, à decadência da cana-de-açúcar no litoral, à retomada da produção de algodão no interior, às continuas secas e a ascensão do regime republicano.
A ideia persiste
Candidato a governador pelo PTC, Roberto Ronconi em 2010 apresentou como uma das propostas a mudança de capital para a cidade de Mossoró. Na ocasião ele citou o exemplo da África do Sul, que tem três capitais, e destaca que no Estado potiguar poderia ser a capital do turismo, destinada a Natal; do artesanato, Caicó; e da administração, Mossoró. Segundo ele, essa é uma forma também de melhorar a qualidade de vida da capital potiguar.
Apelidada de capital do Oeste, Mossoró foi a sede do Governo do Rio Grande do Norte do dia 28 até 30 de setembro de 2021. A medida solicitada pelo Executivo foi aprovada à unanimidade pelos deputados estaduais no dia 23/09/2021 e sancionada em publicação no Diário Oficial no dia 27/09/2021. A formalidade de transferência temporária da sede do Governo teve o objetivo de homenagear a cidade pelo pioneirismo na abolição da escravatura, comemorada localmente no dia 30 de setembro.
Fontes:
Caminhos que estruturam cidades: redes técnicas de transporte sobre trilhos e a conformação intra-urbana de Natal / Gabriel Leopoldino Paulo de Medeiros. – Natal, RN, 2011.
Dos caminhos de água aos caminhos de ferro: a construção da hegemonia de Natal através das vias de transporte (1820-1920) / Wagner do Nascimento Rodrigues. – Natal, RN, 2006.
Natal Não-Há-Tal: Aspectos da História da Cidade do Natal/ Secretaria de Meio Ambiente e Urbanismo; organização de João.
Gothardo Dantas Emerenciano. _ Natal: Departamento de Informação, Pesquisa e Estatística, 2007.
O rio Potengi e a cidade do Natal em cinco tempos históricos. Aproximações e distanciamentos. Rubenilson B. Teixeira. Revista franco-brasilera de geografia. Número 23. Ano 2015.
Os desenhos da cidade: as representações da cidade do Natal no século XVII. Rubenilson Brazão Teixeira. Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 21, n. 43, p. 68-96, jan./abr. 2020.
Fontes de consulta:
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Documentos Históricos, vol. XCIII, 1951.
Brasil. Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo ministro de Estado da Industria, Viação e Obras Publicas dr. José Barboza Gonsalves. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912.
CASCUDO, Luiz da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Achiamé, 1955.
Gaspar Barleu, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil pelos holandeses, tradução e anotação de Cláudio Brandão, Rio de Janeiro, Serviço Gráfico do Ministério da Educação, MCMXL.
Joan Nieuhof, Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil, tradução de Moacir M. Vasconcelos, introdução, notas e crítica bibliográfica de José Honório Rodrigues, São Paulo, Livraria Martins, 2ª ed., 1951. A mesma informação em Dussen, loc. cit., e Barleu, loc. cit.
KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Coleção Pernambucana, Vol. XVII. Recife : Secretaria de Educação e Cultura, 1978.
Manoel Ferreira Nobre, Breve Notícia sobre a Província do Rio Grande do Norte, prefácio e notas de M. Rodrigues de Melo, Rio de
Janeiro, Editora Pongetti, 2ª ed., 1971.
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Terra Natalense. Natal: Fundação José Augusto, 1991.
RODRIGUES, Wagner do Nascimento. Dos caminhos de água aos caminhos de ferro: a construção da hegemonia de Natal através das vias de comunicação (1820-1920). Dissertação de Mestrado: Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2006.