A Sociedade Cultural Brasil-Estados Unidos – SCBEU
A Sociedade Cultural Brasil-Estados Unidos (SCBEU), a primeira escola estruturada de inglês de Natal, foi criada em 1957. A localização da SCBEU era privilegiada e ocupava enorme terreno até então utilizado como área do “Adido Cultural dos EUA”, no Bairro de Petrópolis. Em sua fase áurea, a SCBEU chegou a contar com 1.900 alunos.
A SCBEU foi um referencial nos anos 1960 e 1970 para toda nossa geração em Natal. Tinha características ambientais e organizacionais que davam um ar de Estados Unidos dentro da nossa cidade. O laboratório de línguas da SCBEU, importado dos States, era um diferencial na época. A maior parte dos equipamentos e material da Escola foi doada pelo governo americano.
No cenário da Guerra Fria
No cenário local do início dos anos 1960, o governador Aluízio Alves tentava obter ajuda internacional para o RN e articulava uma espécie de “ponte de amizade” com o governo Kennedy. Aluízio era um governador muito popular, inovador, proativo e “confiável” para os americanos dentro dos padrões existentes, onde o referencial oposto eram os esquerdistas Miguel Arraes, em Pernambuco e Leonel Brizola, no Rio Grande do Sul.
Em 1965 a inauguração da Praça Kennedy, no centro da cidade, e do Instituto Kennedy contaram com a presença do senador Robert (Bobby) Kennedy, irmão de John Kennedy. O governador Aluízio Alves havia convidado o presidente JFK, mas o mesmo foi assassinado em 1963. A chegada de Bobby Kennedy no Aeroporto Augusto Severo em Natal foi apoteótica. Guardando as proporções, o entusiasmo, segundo Luis Porpino, lembrava a chegada dos Beatles nos EUA. A comitiva americana visitou rapidamente a SCBEU. Nesse período havia intensa propaganda americana contra o comunismo e especialmente contra a revolução cubana. Na SCBEU eram distribuídas revistas em quadrinhos sobre o tema. Na cidade, passou a ocorrer distribuição de leite em pó doado pelos americanos através do Programa “Aliança para Progresso”.
A Aliança aplicou recursos em diversas frentes no RN. Entre outros podem ser citados: a construção do conjunto habitacional “Cidade da Esperança”, a vinda do navio Hospital Hope, o Serviço Coorporativo de Educação do Rio Grande do Norte e o Convênio SUDENE/USAID para Formação de Professores na área de Matemática.
Diretores
Os primeiros diretores eram americanos e tinham mandato de dois anos. Em tempos de Guerra Fria, comentava-se entre os estudantes, que John Ewing, o primeiro diretor da Escola, era vinculado ao Serviço de Informações dos EUA. Foram seus sucessores: Robert Lindquist, William Hauseman e Douglas Rose.
No início dos anos 1970, o almirante Tertius Rebello, ex-viceprefeito de Natal foi diretor da SCBEU. Sua posse foi muito festiva e contou com a presença do embaixador americano Lincoln Gordon e do governador Cortez Pereira.
Professores
Foram professores da SCBEU, entre muitos outros: Lúcio Brandão, José Melquíades, Protásio Melo, Severina, Eládio L’Eraistre Monteiro, Luciano, Floripes, João Batista, Carlos Fernandes, Fiúza, Cristina, Marília, Judy (Hey Jude – americana), Petit das Virgens, Ana Lúcia China Barreto e o amigo Juarez Chagas, que chegou a ser diretor da sociedade, já em meados dos anos 1970.
Nem sempre havia disposição dos alunos para dobrar a língua e caprichar na pronúncia exigida pelo mestre em fonética, o excelente professor Protásio Melo. Mas o ambiente era um dos points preferidos da moçada.
Alunos
Eram alunos da SCBEU nos anos 1960/1970: Alexandre Lara Menezes, Agnelo Alves Filho, Ana Valcácia, Adriana Soares Cunha, Arnaud, Carlos Alberto Nicoletti, Carlos José Cavalcanti, Clemente Carvalho, Ceiça Pinheiro Daniel, Djalma Marinho Pereira, César Farias, Clécio Godeiro, Émerson Aguiar, Émerson Daniel, Ezequiel Rebouças Júnior, os irmãos Dore, Fábio Vieira, Francisco Maia, Ismar Paiva, Roberto, Renata e Marcos Klemig, Jaime Mariz, Juarez Bilro de Andrade, João Maria Alencar, João Maria Monte, Joel Adonias Neto, Jorge Lira, José Ariston Neto, Márcio (filho da professora Severina), Mariluce, Milton da Costa Cirne, Soledade Fernandes, Paulo Herôncio, Yuris Cortez, Roberto Galvão, Petit das Virgens, Vivaldo Pinheiro, Zivanílson Teixeira e Zwinglio Costa. Todos esses estudaram em livros como: Life with the Taylors e English 900.
O cotidiano da cidade na nossa infância e adolescência nos anos 1960 e 1970 em Natal, o dia a dia com a família, os vizinhos, o ambiente estudantil, as peladas de rua, a turma da praia, as matinês do ABC, o Hippie Drive-in, a SCBEU, as paqueras.
Um fato pitoresco aconteceu quando um pintor estava colocando as letras de “Sociedade Cultural Brasil Estados Unidos” na parede branca que ficava do lado da Avenida Getúlio Vargas. O pintor era muito bom, mas tinha dois defeitos: era analfabeto e cachaceiro. Certa tarde ele simplesmente resolveu sair mais cedo para tomar umas biritas e deixou o texto incompleto. Ao chegar à SCBEU o diretor Lúcio Brandão foi examinar o andamento do serviço e ficou desesperado: estava pintado na parede apenas “Sociedade Cu”. Pra complicar ainda mais a situação Juarez ainda alfinetou “… e se Erivanaldo Galvão souber disso vai espalhar a gozação junto com a turma do Yázigi…”. Lúcio ficou louco e tratou correndo de conseguir uma lona para cobrir a parede evitando maiores repercussões.
Filmes
A exibição do filme especial sobre a chegada dos astronautas americanos M. Collins, Eldwin Aldrwin e Neil Armstrong à lua no final dos anos 1960 foi sucesso na SCBEU. O filme rolou antes de uma festa do tipo Haloween que era grande novidade para os estudantes natalenses. Essa película foi posteriormente exibida na Praça Pedro Velho e chamou a atenção de uma multidão, conforme ilustra fotografia exibida ao lado.
Intercâmbio
Na SCBEU, especialmente, tínhamos acesso a um banco de nomes e endereços de estudantes de diversos países interessadas em fazer amizade com brasileiros.
Fred Rossiter Pinheiro , Carlos, Juarez, Jorge Lira, Fernando Suassuna e outros colegas, mantivemos, durante alguns anos, troca de correspondências com mais de duas dezenas de estudantes da França, EUA, Inglaterra, Jamaica, Alemanha, Holanda, Itália, Bélgica, África do Sul, Suíça e Nova Zelândia. Como ainda não havia Internet, essa era uma forma ingênua e prazerosa de fazer novas amizades, curtir experiência diferente e conhecer mais sobre outros países. Lembro da intensificação da troca de recortes de revistas e jornais na época da Copa do Mundo de 1970. Meu avô, Carlos Rossiter, gostava de ver os postais e fotos que eu recebia, especialmente os da Inglaterra. Papai retirava todos os selos dos envelopes para dar ao sobrinho Heider Pinheiro Moura, aficcionado filatelista.
Boas lembranças de Michelle, Eileen, Simone, Jennifer, Gisela, Eva, Marie, Sandra, Martha, Laura Mason e outras amigas que há muito tempo perdemos contato.
Rock and roll
Todo esse cenário e mais a explosão mundial do Rock anglonorte americano serviam para o aumento do interesse pelo aprendizado da língua inglesa na cidade. A SCBEU era o melhor local para se conhecer e curtir um LP novo de uma banda de Rock americana ou inglesa.
Já era final dos anos 1960 quando Ediléa, Vladna e Rosângela Porto, chegaram dos Estados Unidos para morar na nossa rua, filhas do militar da Aeronáutica Paulo Porto e de dona Lourdinha. Com elas um grande acervo de LPs importados e nós nos reuníamos para escutar as novidades. João Benévolo (hoje médico) era um assíduo. Foi com elas que escutamos pela primeira vez o LP original americano de Simon & Garfunkel e especialmente as músicas Mrs. Robinson, El Condor Pasa e Sounds of Silence, ficamos extasiados pelas músicas, simplesmente espetaculares.
Os estudantes levaram a novidade à SCBEU. Lá o LP fez um sucesso enorme. Fred Rossiter Pinheiro, Carlos, Juarez Chagas, Milton da Costa Cirne, Jorge Lira, Fátima Arruda, Lúcio Flávio, Vladna, Rosângela, Joana D’Arc (Darquinha) passamos a escutar repetidas vezes as músicas e discutir a tradução, daí todo mundo cantava. Quem passava por perto, parava pra acompanhar a curtição. As dúvidas no inglês eram tiradas com o professor Protásio.
Cada um procurava levar um lançamento musical em inglês para os encontros de fim de tarde, entrando pela noite. O imenso e belo visual do Oceano Atlântico servia como um pano de fundo poético.
Um disco muito debatido foi o da ópera rock “Tommy” da banda The e Who. Nesse caso, a discussão foi bem mais complexa e envolvia toda a sequência das músicas que formavam o enredo da obra. Definitivamente, o Rock foi fator motivador no aprendizado da língua inglesa para nossa geração.
A febre beatlemaníaca em Natal aumentou o interesse dos jovens pelo aprendizado da língua inglesa: professores da SCBEU e do FISK eram obrigados a quebrar a sequência de aulas baseadas em livros como: Life with the Taylors e English 900 para debater a tradução de Strawberry Fields Forever e Penny Lane. Luis Alberto Marinho – o Beto Beatle, Petit das Virgens e Juarez Chagas – eram dos mais entusiasmados nesse contexto. Surgiram os assustados – Festinhas improvisadas em residências na base de radiola e na reunião dos discos que cada um levava.
No final dos anos 1950, as emissoras de rádio de Natal começaram discretamente a rodar músicas de Rock, especialmente sucessos iniciais de Bill Halley, dos irmãos Cely e Tony Campello e de Carlos Gonzaga. Elvis Presley surgia com seu topete, atraía especial atenção das garotas que assistiam às sessões do cine Rio Grande.
O jovem Gileno Azevedo Wanderley foi dos primeiros a comprar discos de Rock em Natal. E costumava mostrar as novidades aos seus colegas do Marista e da SCBEU. Na sequência começou a fazer dublagem de Elvis.
O enceto de tudo foi no SCBEU onde o amigo Gileno Azevedo emprestara um compacto de Elvis, ainda em 1964, e recomendou comprar uns na MM Costa, a única loja de discos de Natal à época, situada à avenida Rio Branco.
O enceto de tudo foi no SCBEU onde o amigo Gileno Azevedo emprestara um compacto de Elvis, ainda em 1964, e recomendou comprar uns na MM Costa, a única loja de discos de Natal à época, situada à avenida Rio Branco. “Em um ano eu tinha absolutamente tudo que o Elvis tinha lançado até então. As menininhas teenagers ficavam malucas para ver as capas dos discos”, recorda.
Eustáchio dos Santos Lima Filho morava na Rua Joaquim Manoel em Petrópolis e estudava na SCBEU, lá conheceu Gileno (Leno) Wanderley, que costumava levar compactos com músicas cantadas na língua inglesa para tocar na radiola nos intervalos das aulas. Ao escutar um som com batida diferente, Eustáchio se surpreendeu “O que é isso bicho?”. Leno respondeu “É Rock cara, Rock and Roll”.
No dia seguinte Eustáchio arranjou dinheiro e foi à loja MM Costa, na cidade alta, perguntou se tinha disco de Rock. O vendedor nem sabia o que era Rock e Eustáchio voltou frustrado pra casa. Novamente procurou Leno e reclamou “Pô cacete esse negócio de Rock não existe não”. Com paciência Leno orientou “então procure disco de Elvis Presley”. Ele tinha 15 anos em 1964, se entusiasmou com as músicas de Elvis Presley. Passou a fazer dublagens do Rei do Rock em festinhas e logo pediu ao pai pra comprar uma guitarra. Em 1964 fez uma apresentação solo de Rock com topete e tudo para os estudantes da SCBEU. Eustáchio, Leno, Etelvino e outros jovens, logo viriam se transformar em dinossauros do Rock natalense.
Eustachio logo passou a dublar o Rei do Rock em shows no VIP Show do ABC Futebol Clube, em Petrópolis, e no evento anual Quermesse da Lagoa, promovido na Lagoa Manoel Felipe, na hoje Cidade da Criança.
Por lá também cantava o amigo Gileno, que o apresentara a Elvis anos antes e mais tarde se tornaria ícone da Jovem Guarda com a dupla Leno e Lilian.
Isso até que o amigo Paulo Rezende trouxe de São Paulo um compacto de I Wanna Hold Your Hand, dos Beatles. “Quem gostava de Elvis, de Pat Boone, era meio intrigado dos Beatles. Mas fui tragado pela música dos caras”.
E nascera aí o embrião para Os Vândalos e pela coleção quase inimaginável de material beatle.
Os irmãos Eustachio e Afonso Lima e o amigo Bruno Pereira pertenciam à restrita elite natalense matriculada na pioneira escola de inglês Sociedade Cultural Brasil-Estados Unidos (SCBEU), localizada na Rua Joaquim Manoel, em Petrópolis. E apresentados logo cedo a Elvis e aos Beatles, detinham a fórmula até então inédita na cidade para fazer sucesso: dominar a língua inglesa e gostar e ter contato com discos de rock.
Em 1964, os Beatles já haviam tomado o mundo de assalto com A Hard Days Night e o natalense ouvia, no máximo, as versões em português por Renato e Seus Blue Caps quando três adolescentes começaram a difundir as canções do yeah yeah yeah em versões originais em Natal.
Aluno, professor e derradeiro diretor da Scbeu, que funcionou entre 1957 e 1983, Juarez Chagas chegou a iniciar o livro logo após o encerramento das atividades da escola, mas percebeu “que se escrevesse a história completa seria um livro policial”, conta Desistiu por um tempo. Mudou o foco, e só retomou o projeto em 2005: “Preferi ressaltar o lado bom dos tempos da Scbeu”, pondera. O livro traz um rico acervo de documentos e fotografias que o autor conseguiu evitar que fossem parar no lixo – o autor tem todos os originais e contou com muitos colaboradores.
Chagas faz referências históricas e culturais para contextualizar o período retratado com o que andava rolando pelo resto do mundo, e lembra que as primeiras bandas de garagem conheceram o rock’n roll através do acervo de LPs e compactos da biblioteca. O pioneirismo da Scbeu também se reflete na realização das primeiras matinês e festas americanas da cidade. “O primeiro Halloween só foi promovido em 1963 devido a resistência das pessoas em comemorar um dia dedicado às bruxas”, diverte-se.
A partir do livro de Juarez, pode-se entender como Natal continuou sendo ‘bombardeada’ pela cultura yankee mesmo depois da Segunda Guerra Mundial: “A Scbeu foi a primeira instituição binacional da cidade (Brasil-EUA), era um pedaço da América do Norte aqui e tudo o que acontecia lá fora chegava à cidade através da escola”, garante o autor. “Era uma maneira dos Estados Unidos marcarem presença durante a Guerra Fria com os soviéticos”, acrescentou.
Entre a turma roqueira presente “Nos bons tempos da Scbeu…” destaque para o cantor e compositor Leno; Reinaldo Azevedo, da banda Anos 60; os irmão Lima (Fon, Eustáquio e Lóla) d’Os Vândalos; e o jornalista Petit das Virgens, visto em retratos empunhando seu violão. O livro de 63 capítulos também traz 200 depoimentos de ex-alunos, professores e diretores da instituição. “Não tenho dúvidas que se trata de um registro histórico importante para se compreender as transformações e o momento atual da cidade”, disse Juarez, com um ar de saudade no olhar.
A Amizade do Sargento e do seu Professor de Português
O professor Protásio era natalense, nascido em 3 de julho de 1914 e formado em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Recife. Chegou a ser Promotor Adjunto da comarca de Natal, mas abandonou a carreira jurídica para se dedicar ao ensino do idioma bretão. Com a eclosão da Segunda Guerra e a chegada das tropas americanas em Natal, se tornou o professor de português dos oficiais e praças estrangeiros.
O professor Protásio, falecido em 2006, foi autor do livro “Contribuição norte-americana a vida natalense” e também tratou da questão da morte do sargento Browning (Págs. 72 e 73).
Afirmou que a partida por via marítima dos corpos dos militares americanos enterrados em Natal ocorreu no dia 25 de abril de 1947 e tal como o jornalista Edilson, também deu aulas de português ao sargento Browning.
O professor Protásio comentou em seu trabalho literário que o túmulo de Browning foi construído no cemitério do Alecrim por seu intermédio, a pedido da família do falecido. Logo após a construção do túmulo, por solicitação do pai do sargento, o Comando da Base de Parnamirim publicou a seguinte nota:
“In memory of Sgt. Thomas N. Browning, Air Corps, born in Cincinnati, Ohio, June 15, 1921. Died July 18, 1943, in the service of his own country, in the services of Brazil and the Brazilian People, and the service of all who love liberty an freedom throughout the world. The memorial war erected by his own family and his friends in Natal.”
Igualmente como na reportagem publicada por Edilson Varela em 1945, em nenhum momento o professor Protásio em seu livro comenta sobre alguma noiva natalense do sargento americano, ou sobre a razão de sua morte.
É possível que o americano tivesse uma noiva brasileira, que pediu a família do seu amado para este ficar enterrado no solo potiguar? Quem sabe?
Provavelmente através do contato junto a outros militares americanos, ou seja pela amizade angariada junto ao sargento Browning, o professor Protásio levou adiante a última homenagem a este militar. Com a total anuência da família do americano.
Mesmo sem o sargento Browning ter morrido em combate, derramando seu sangue em solo estrangeiro e tombando junto a seus companheiros de farda, algo fez com que a sua família da distante Ohio decidisse deixar seu parente em nossas terras.
Entre outras possíveis razões, em minha opinião, esta questão aponta para uma das melhores características existentes no povo da minha terra; a sua enorme facilidade de acolher e fazer amizades com aqueles que vêm de fora.
Depoimentos
“Matriculei-me na escola de inglês da Sociedade Cultural Brasil Estados Unidos – SCBEU, localizada no terreno que se estendia da Avenida Presidente Getúlio Vargas até a Rua Coronel Joaquim Manoel, com várias construções esparsas que abrigaram o Consulado Americano na época da Segunda Guerra Mundial. Eu contava com pouco mais de 10 anos, mas já percebia a primeira escola de inglês da cidade como point da moçada.
No primeiro semestre, Silvino Melo apresentava aos alunos os pronomes He e She, dobrando os braços para simular a força dos homens e arredondando-os para simular as curvas femininas, numa técnica pedagógica que ficou gravada até hoje, rsrsrs.
Marília Varela Bezerra tinha acabado de retornar de uma temporada com a família nos Estados Unidos e mantinha a ordem, imputando multa para quem falasse português em sala. A rigidez sertaneja mesclando-se à disciplina americana.
Petit das Virgens circulava com seu eterno macacão jeans, óculos a la John Lennon, cabelos compridos, estilo Hippie, típico de quem tinha morado nos Estados Unidos em plena efervescência do movimento.
Carismático, fazia sucesso como professor e suas aulas eram bastante concorridas. Certa vez, nos primeiros dias do semestre, com a sala lotada, uma loira alta e linda apareceu na porta, fazendo biquinho e pedindo uma vaga. Petit olhou para um lado e para outro e só tinha disponível a sua cadeira. Preferiu perder o assento, mas não aquela aluna.
Assim que autorizou a entrada, a loira deu uma de esperta, puxou a mãe pelo braço e a acomodou na cadeira gentilmente oferecida pelo professor, que perdeu a cadeira e ganhou uma coroa. Eu, na mais pura inocência, sem qualquer malícia, nem percebi esse fato acontecido na minha turma e contado pelo próprio protagonista, rsrsrs.
E assim seguia Petit, com violão a tiracolo para entoar as baladas do Nobel Bob Dylan, Like a Rolling Stones, procurando encontrar respostas para tantas indagações. The answer, my friend, is Blowin’ in the Wind…
A música era bastante valorizada e os discos e revistas americanos ficavam disponíveis na construção mais próxima à Avenida Getúlio Vargas. Naquele bloco também estava a direção/secretaria e a cantina mais ao lado, com uns bancos de cimento que permitiam uma bela vista da Cidade Marinha.
O terreno era acidentado, com algumas construções no meio, incluindo um laboratório linguístico (destinado aos alunos do último ano) e salas de aula. Tinha uma ladeira para carros ligando a parte mais alta até a parte baixa, e um caminho cimentado que abrigava alguns bancos sob cajueiros. A biblioteca, já voltada para a Rua Coronel Joaquim Manoel, dividia a construção com poucas salas de aula.
Com tanto espaço disponível, as turmas de adolescentes aproveitavam para se encontrar, paquerar, namorar e fazer amizades. Eu era muito nova para aproveitar o embalo, mas a SCBEU sabia movimentar os alunos e até os apresentou ao Halloween, festa completamente desconhecida na cidade.
Fiz o curso regular completo e, ao final, recebi o diploma de Teacher Training Course, assinado pelo Presidente da SCBEU, Protásio Pinheiro de Melo, e pelo Diretor, Lúcio Brandão. Estava apta a lecionar inglês com apenas 14 anos de idade e poderia me juntar ao time dos meus professores, que a lembrança alcança: Silvino Melo, Petit das Virgens, Domingos Guará, Marília Varela Bezerra e Armando.
O terreno terminou sendo vendido e hoje é ocupado por vários prédios residenciais, mas a SCBEU marcou a sociedade da época, criando vários vínculos de amizade, sedimentados nas lições do livro Life with The Taylors.”
Maria Elza Bezerra Cirne , aluna do Scbeu
“Era bom sair pelo portão de trás, descendo a colina através de seu enorme e bem cuidado gramado. Tão grande que, hoje, vários condomínios poluem a paisagem por lá.”
Leno, cantor e compositor, aluno do Scbeu entre 1963 e 64.
“Era um dos mais importantes points da cidade na época. Nunca deveria ter se acabado. Este livro será um louvável resgate à sua memória e importante para a história da cidade.”
Carlos Eduardo Alves, ex-prefeito, advogado, aluno entre 1973 e 75.
“A minha lembrança mais remota de entrar naquele enorme território, é de quando a meninada da redondeza, com baladeiras e zarabatanas, ia lá para caçar lagartixas e calangos (…) Lembro também daquela biblioteca que abrigava discos de música norte-americana.”
Luiz Lima (Lóla), instrumentista e compositor, aluno entre 1962 e 73.
“Foi a melhor escola de língua inglesa que tinha em Natal. Merecia todo o apoio da comunidade.”
Pery Lamartine, escritor e ex-vice-presidente da Scbeu.
Em 1964, as músicas dos Beatles começaram a rodar discretamente nas rádios da cidade (só existam AM). Mas, a base principal para curtição inicialmente foi a Sociedade Cultural Brasil Estados Unidos (SCBEU), primeira escola de língua inglesa da cidade. Lá os primeiros discos dos Beatles e de Elvis Presley eram escutados com enorme curiosidade. Os irmãos Eustáquio e Afonso Lima, juntamente com Gileno Azevedo e José Bezerra Marinho começaram a fazer dublagens do Rock. A estudante Ivone Freire foi a primeira garota a possuir uma guitarra em Natal. Os estudantes passaram a se interessar mais pelo estudo do inglês para traduzir “Yesterday”, “Help!” e “Twist and Shout”.
Fred Rossiter Pinheiro, escritor
Chegando à cidade, vindo do interior Currais Novos, para onde a família tinha se mudado em 1957, (meu pai tinha sido transferido para a agência do Banco do Brasil daquela pequena cidade do interior) fomos morar em Petrópolis, perto do SCBEU, uma reminiscência do tempo dos americanos. Chegando em Natal, fomos estudar no Educandário Natal, no centro da cidade e no SCBEU, porque minha mãe já sabia que o idioma Inglês poderia ser útil no futuro”.
Aluno Afonso dos Santos Lima
O outro lado da história
A trajetória da Scbeu também guarda um lado obscuro, mal explicado, sobre a venda do enorme terreno onde funcionou a escola. Situado em área nobre, de localização privilegiada, a propriedade foi alvo da cobiça imobiliária a partir do momento que o governo norte-americano resolveu se desfazer do imóvel.
Segundo o jornalista Petit das Virgens, um dos personagens retratados no livro “Nos bons tempos da Scbeu…” de Juarez Chagas, na época do Governo (Jimmy) Carter, presidente dos EUA entre 1977-81, a política norte-americana entrou em choque com o modus operandi do presidente-general Ernesto Geisel (1974-79). “Estávamos em plena Ditadura Militar e, por conta de questões ligadas aos Direitos Humanos, os Estados Unidos resolveram se desfazer de todas as propriedades no Brasil – o terreno da Scbeu estava no meio dessa história, e o então diretor da escola na época teve a prioridade para comprar ou vender o terreno”, lembra Petit.
“Ele (o então diretor) ofereceu a área para um conhecido construtor e político da cidade, que tentou comprar a área direto com a Embaixada Norte-Americana no Recife. Para garantir a prioridade de venda, o então diretor teve que acionar a justiça. Ganhou o processo e no fim das contas vendeu o terreno por um valor bem abaixo do praticado no mercado”, disse o jornalista. “O comprador até se comprometeu a construir uma escola em parte da área, como forma de compensar o ótimo negócio, mas ficou só na intenção mesmo. Ex-diretores chegaram, inclusive, a cogitar a abertura de uma auditoria, mas perceberam que as investigações poderiam envolvê-los também.
“Perdemos um importante patrimônio arquitetônico, cultural e educacional em nome da especulação. A Scbeu era um paraíso, verdadeiro filé do ponto de vista imobiliário”, garante Petit das Virgens, que chegou a escrever uma matéria na época (dando todos os nomes aos bois) sobre o episódio da venda do terreno, mas lamenta nunca ter sido publicada.
Nos bons tempos da SCBEU
Capítulo importante dessa história é a saudosa Sociedade Cultural Brasil-Estados Unidos, que ganha destaque nas páginas do livro “Nos bons tempos da SCBEU – viagem nas memórias dos anos dourados de Natal”, do escritor Juarez Chagas, ex-professor de inglês da Sociedade Cultural Brasil Estados Unidos. O título publicado em 2011 pela Sebo Vermelho Edições tem 600 páginas e cerca de 900 fotografias.
“A Scbeu, criada em 1957, tinha status de academia e sua trajetória se confundiu com a história da própria sociedade natalense na época. Foi lá que funcionou o primeiro cinema driving e a primeira biblioteca da cidade, criada por Zila Mamede em 1958. Sem falar dos intelectuais que participaram da fundação da escola, um ano antes de também fundarem a Universidade Federal”, relembra Chagas, exaltando a importância da primeira escola de inglês da capital potiguar. “Gente da alta sociedade, artistas, intelectuais… três gerações estudaram na Scbeu”, aponta o escritor, responsável pela edição mais volumosa já publicada pela Coleção João Nicodemos de Lima (326 títulos) do Sebo Vermelho.
Vale registrar que Zila viria a criar a biblioteca estadual Câmara Cascudo em 1969 e a Central da UFRN em 1974. A poeta e bibliotecária, ao lado de outras 42 personalidades do quilate do médico Onofre Lopes; do jurista Edgar Barbosa; do ex-governador Tarcísio Maia; do advogado Dalton Melo; Dom Nivaldo Monte; Humberto Nezi; Otto de Brito Guerra; Protásio de Melo, entre outros nomes não menos importantes no contexto histórico e social da cidade, participou da fundação da escola – que funcionou em um casarão com vista para o mar, no alto da Av. Getúlio Vargas, Petrópolis, próximo ao Hospital Universitário Onofre Lopes, em um terreno que ia até a Rua Cel. Joaquim Manoel (onde hoje funciona o edifício Harmony Medical Center). A escola ocupava um quarteirão inteiro.
Fontes:
A cultura pós-guerra na terra do sol – Tribuna do Norte – http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/a-cultura-pos-guerra-na-terra-do-sol/185471 – Acesso em 17/01/2022.
Dos bondes ao Hippie Drive-in [recurso eletrônico]: fragmentos do cotidiano da cidade do
Natal/ Carlos e Fred Sizenando Rossiter Pinheiro. – Natal, RN: EDUFRN, 2017.
Eustachio, o vândalo que amava Elvis, os Beatles e os Rolling Stones – Papo Cultura – https://papocultura.com.br/eustachio-e-os-vandalos/ – Acesso em 17/01/2022.
Jovem Guarda 50 anos – Homenagens – https://luciazanetti.wordpress.com/tag/natal/ – Acesso em 17/01/2022.
Juarez Chagas prepara a segunda edição do livro “Nos bons tempos da SCBEU” – Ponto de Vista – http://www.pontodevistaonline.com.br/juarez-chagas-lanca-segunda-edicao-livro-nos-bons-tempos-da-scbeu/ – Acesso em 17/01/2022.
Sociedade Cultural Brasil Estados Unidos – SCBEU – Jabá com Jerimum (Blog de um Natalense) – https://jabacomjerimumrn.blogspot.com/2010/07/sociedade-cultural-brasil-estados.html – Acesso em 17/01/2022.
TOK DE HISTÓRIA – https://tokdehistoria.com.br/2012/11/17/4341/ – Acesso em 17/01/2022
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