Lagoa de Manoel Felipe
Em torno da lagoa de Manoel Felipe, a Palestina era ali, no Tyrol. São poucos os que ainda chamam o lugar de Lagoa de Manoel Felipe.
Manoel Felipe, nem Cascudo soube dar origem. Foi um morador dos arredores da lagoa. “Não sendo sesmeiro, teria comprado a terra e nela residido para que seu nome recordasse, contemporaneamente, uma existência sem vestígios na micro-história da cidade do Natal (Diário de Natal, 14 de março de 1962, p.3)”, cita Itamar de Souza em sua Nova História de Natal.
Formação
A cidade do Natal tem uma formação geológica caracterizada por dunas que se apóiam em uma estrutura mais antiga denominada Grupo Barreiras, essa estrutura de formação sedimentar se define por grandes faixas estratigráficas constituídas de silte e de argila, material esse que, devido a sua granulação fina e comportamento plástico, impede a infiltração das águas pluviais para substratos estratigráficos mais profundos. É devido a essa situação geológica que podemos constatar o afloramento de acúmulos d’agua, ou simplesmente a formação de lagoas, ao longo de todo o território da cidade.
As inúmeras lagoas que afloravam à superfície do solo natalense não foram poupadas de avaliações negativas feitas por muitos profissionais médicos, avaliações essas que, em diversos momentos, elegiam as lagoas como sendo grandes vilãs da saúde pública e da higiene na cidade.
Das lagoas existentes em Natal, a mais famosa delas é a Lagoa de Manoel Filipe, localizada no bairro de Tirol e sobrevivente aos aterramentos, prática comum em Natal, que, amparada em discursos médicos, higiênicos, urbanísticos e econômicos, puseram fim a inúmeras delas, as quais, a partir de tal intervenção, deixaram de fazer parte da paisagem da cidade.
História
Aparece em mapa holandês dos tempos da ocupação (1633/1654), junto a outras duas lagoas, supostamente as que até bem pouco tempo eram chamadas Lagoa Seca (Tirol) e Lagoa do Enforcado (Alecrim), ambas aterradas pelo crescimento da cidade rumo Sul.
No mapa, que não lhe dá nome, é mostrada como nascente do Rio Tiuru..Desse rio, é que Natal, desde a sua fundação em 25 de dezembro de 1599, abasteceu-se de água por décadas, mais de três séculos. Rio de tanta importância para a existência da cidade, que era chamado rio de Beber Água.
Foi em busca da água do rio de Beber Água, que surgiu o Caminho do Rio de Beber Água, que foi juntando casinholas em suas margens, até se tornar a Rua do Caminho do Rio de Beber Água, que viria a ser chamada, muito depois, Rua de Santo Antônio, depois que nela foi construída a Igreja de Santo Antônio dos Militares, inaugurada em agosto de 1766, segunda rua da cidade.
Na verdade, o Rio Tiuru ou Tissuru, como também era chamado, nasce na Lagoa Seca, mais a Sul, que corre para o norte e toma o oeste quando se encontra com as águas sobradas da Lagoa de Manoel Felipe a caminho do Potengi.
Rio permanente, que mesmo aterrada a Lagoa Seca e conduzidas suas sobras de água através de manilhas enterradas, ainda vive com seus tintins, carás, piabas, muçus, mas sem seus jacarés.
Segundo Cascudo, o “licenciado Francisco Alves Bastos era proprietário da região. O registro da ‘data’ é de 15 de junho de 1743, e o peticionário recebeu quatrocentas braças de comprido e outras tantas de comprimento pelo Rio de Beber Água acima, compreendendo uma lagoa.” Essa Lagoa é a futuramente chamada Lagoa de Manoel Felipe, assim já conhecida nos primeiros anos do surgimento do bairro do Tirol, onde hoje está inserida, entre as avenidas Prudente de Morais e Rodrigues Alves.
Uma nota não assinada em A República da época diz que os moradores dali “resolveram denominar a Lagoa de Manoel Felippe por Lago de Genezareth”. Isso indica que a Lagoa de Manoel Felipe já era assim chamada e que a tentativa de mudar seu nome não vingou, já que, embora quase no esquecimento, permanece até hoje.
Usos no século XX
As lagoas em Natal, no início do século XX, tiveram vários usos, dentre os quais: o banho de crianças, de jovens e de pessoas comuns, o banho de animais de trabalho, a lavagem de roupa, a coleta da água para consumo doméstico e até a pesca do peixe miúdo. Essas lagoas foram, e ainda são, um misto de dádiva e castigo, lugar onde a população, especialmente a população pobre, se divertia, se higienizava, de onde tirava o “precioso líquido” para todos os usos; mas também era o lugar traiçoeiro onde alguns morriam por afogamento ao se aventurar no nado; um lugar propício a ser um criatório de mosquitos transmissores da malária ou da febre amarela, bem como um criatório de diversos tipos de verminoses.
A lagoa de Manoel Filipe deve o fato de ter sido poupada de aterramentos, como apontamos anteriormente, a sua localização, mas também a ocasião de ser ela um dos alimentadores da fonte do Baldo, onde estava o reservatório d’água da cidade e para onde as águas da lagoa afluíam em época de chuva.
Em setembro de 1902, a lagoa de Manoel Felipe foi visitada e vistoriada pelo coronel Joaquim Manoel, presidente da Intendência, acompanhado pelo major Raymundo Filgueira, fiscal do 1° Distrito.
No relato feito pelas autoridades municipais verificou-se que as águas da lagoa estavam “completamente estagnadas, devendo, quanto antes, ser prohibida a lavagem de gente e de animaes” (Lagôa de Manoel Filipe. A Republica, 27 de setembro de 1902). Para evitar as condições de estagnação e a contaminação das águas e melhorar o aspecto da paisagem da lagoa, a Intendência decidiu por “mandar cercar a lagoa deixando apenas a parte necessária para o bebedouro público” ( Idem).
Em agosto de 1903 é a vez do Governo do Estado pedir, através de ofício à Intendência Municipal, uma maior atenção à Lagoa de Manoel Filipe. Segundo o documento oficial, era pedido ao presidente da Intendência Municipal mandar “apresentar duas praças do batalhão de segurança” ( A Republica, 08 de agosto de 1903), que estava sob o comando do mesmo, a fim de ficar em prontidão na lagoa de Manoel Filipe para que se proibisse
a lavagem de roupa e o banho.
Tal proibição devia-se ao motivo de ser a lagoa uma das fontes alimentadoras de água para o reservatório d’água da cidade, tendo assim, essa medida, um sentido médico-higienista. Em julho do mesmo ano, o jornal “A República” trouxe uma nota na qual escrevia sobre o fato de querer a população que morava próximo a Lagoa de Manoel Felipe mudar o nome desta para Lago de Genazareth, o motivo se devia ao fato de que a região sul da Cidade Nova, onde estava a lagoa, era conhecida como Palestina e todos os topônimos daquela área tinham nomes relacionados ao lugar sagrado: Galiléia, Jericó, Hefrate, Bethel, dentre outros.
As lagoas e os acúmulos de água, resultados de invernos rigorosos, existentes na cidade, eram constantemente expostas como efetivamente perigosas, sendo um dos maiores problemas apontados nos discursos da elite o uso que a população pobre fazia desses espaços.
O limite
Através da RESOLUÇÃO No. 54, de 30/04/1904, Art. 15 foi delimitado e subdividido o patrimônio territorial do município de Natal. Segundo ela, a capital estaria dividida em três bairros (Ribeira, Cidade Alta e Cidade Nova), podendo o governo estadual, a partir de então, cobrar anualmente o imposto – foro por metro quadrado de superfície – pelo uso dos terrenos concebidos por aforamento. Essa disposição veio para complementar o Regulamento elaborado em 1893 e facilitar o trabalho da Inspectoria de Hygiene Pública e da Polícia Sanitária no controle e fiscalização do cumprimento dos Códigos de Posturas.
O perímetro da cidade ficou sendo da “(…) linha do sul, da Lagoa Manuel Felippe, estendendo-se pelo curso da corrente do Baldo, até chegar ao rio Potengi” (A REPÚBLICA, 29/09/1904, p.01).
Os actuais accupantes de terrenos municiaes, que não tenham requerido o respectivo aforamento, ou aquelles que os tendo obtido não solicitarem o respectivo titulo deverão fazel-o no praso de noventa dias, contados da publicação da presente resolução, sob pena de multa de 50$000 a 100$000 reis, (…).
Fontes:
Caliane Christia Oliveira de Almeida em Habitação Social: Origens e produção (Natal, 1889-1964).
A CONSTRUÇÃO DA NATUREZA SAUDÁVEL: NATAL 1900-1930. ENOQUE GONÇALVES VIEIRA. NATAL / 2008.
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