O rio como aliado da cidade nascente (1599-1614)
Dentre as várias características morfológicas do sítio urbano inicial de Natal, comuns a diversos núcleos urbanos fundados por portugueses na América portuguesa e em outras partes, está a proximidade do seu sítio com uma fonte de água. Assim, Natal foi fundada em 1599 às margens do rio inicialmente chamado Grande, mas desde cedo também de Potigi, o atual Potengi.
A cidade é, pois, como tantas outras cidades de colonização portuguesa, fruto de um curso d’água. Não há registros documentais explícitos sobre os motivos da escolha do sítio no qual surgiria a cidade. Contudo, não é difícil conjecturar que a proximidade com o Rio Grande fosse um deles: o rio poderia fornecer a tão essencial água para o consumo dos habitantes da cidade, mas também para os animais, bem como servir para os moinhos e engenhos; poderia ser fonte de alimentos, principalmente por meio da pesca; poderia servir como meio de penetração no território, em seu trecho navegável. Essas razões, que não são privilégio de Natal, estão entre as que justificaram plenamente a escolha do sítio urbano também dessa cidade nas proximidades de um rio.
A importância de tal proximidade pode ser atestada de diversas maneiras. Primeiramente, pela localização da Fortaleza dos Reis Magos, construção iniciada em 6 de janeiro de 1598, pouco mais de um ano antes da fundação de Natal. Essa edificação militar, fundamental no processo de conquista da capitania, se situava, não por acaso, na foz do Rio Grande, entre rio e mar. A Fortaleza, ao mesmo tempo em que servia de sentinela ao longo da costa atlântica, impedia a entrada de intrusos rio adentro.
Desde a primeira metade do século XVI, têm-se notícias de naus francesas na costa potiguar, inclusive adentrando o Rio Grande. Na descrição que Frei Vicente do Salvador fez, em 1627, do processo de conquista do Rio Grande no final do século anterior, ele também destaca a presença dos franceses na região. De fato, naqueles tempos, era preocupante e incômoda essa presença francesa para a União Ibérica – Portugal e Espanha. É nesse contexto que a fundação de uma Fortaleza e de uma cidade às margens do Rio Grande se torna essencial para os interesses coloniais portugueses e espanhóis, uma vez que, naquele momento, as duas coroas estavam reunidas numa só (1580-1640). Gabriel Soares de Souza, em seu tratado descritivo do Brasil de 1587, ao acusar a presença francesa rio adentro, indiretamente nos ajuda a entender por que a Fortaleza foi construída na sua foz.
É por esse motivo que antes do início da construção da Fortaleza, em janeiro de 1598, as forças militares portuguesas tiveram que primeiro “descobrir o rio”, em busca de possíveis inimigos, que não tardaram a surgir:
No dia seguinte pela manhã mandou Manuel Mascarenhas dois caravelões descobrir o rio, o
qual descoberto, e seguro entrou a armada à tarde guiada pelos marinheiros dos
caravelões, que o tinham sondado, ali desembarcaram, e se trincheiraram de varas de
mangues para começarem a fazer o forte não tardaram muitos dias que não viessem uma
madrugada infinitos, acompanhados de 50 franceses, que haviam ficado das naus do porto
dos Búzios, e outros que aí estavam casados com potiguares, os quais, rodeando a nossa
cerca, feriram muitos dos nossos com pelouros e flechas, que tiravam por entre as varas (…)
com o que não desmaiaram antes como elefantes à vista de sangue mais se assanharam, e
se defenderam, e ofenderam os inimigos tão animosamente que levantaram o cerco
(SALVADOR, 1627: 105).
Uma vez feitos acordos de paz com os nativos do litoral e expulsos os franceses, a Fortaleza e a cidade, esta última fundada em 25 de dezembro de 1599, vão sobreviver em grande parte graças à proximidade com o rio. A exploração inicial da capitania, através da pesca, da criação e da agricultura de subsistência ou com fins comerciais, como a produção da cana-de-açúcar, caracterizam esse Tempo, de aproximação entre o Rio Potengi com a cidade.
A exploração inicial do Rio Grande pode ser mais bem visualizada no documento, intitulado O Treslado do auto e mais diligências que se fizeram sobre as datas de terras da capitania do Rio Grande, que se tinham dado (ANÔNIMO. O Treslado…1909). Tratava-se de um dossiê que encerrava um conjunto de documentos cujo objetivo era registrar de forma ordenada as concessões de terras já distribuídas ou, como se dizia então, “repartidas” aos colonos na capitania do Rio Grande, assim como evitar os abusos nessas concessões. Nesse
documento, que reúne 186 doações de datas de terras aos colonos, várias referências nos ajudam a entender a relação dos habitantes da cidade com o rio.
Todos esses itens de produção se localizavam nas ribeiras dos rios e lagos do litoral oriental da capitania, área de ocupação colonial mais antiga, e particularmente às margens do Rio Grande, próximo a Natal, colaborando para diminuir a fragilidade da vida urbana da cidade nascente. Afinal, a maior parte dos primeiros colonos se localizava na cidade do Natal e nas suas redondezas. O documento de repartição de terras deixa entrever, em vários momentos, que a distância de algumas das datas doadas em relação ao sítio urbano de Natal e, por conseguinte, do seu rio, explicava o fracasso de sua exploração, seja com o gado, com a cana ou com outra produção qualquer.
Fonte: O rio Potengi e a cidade do Natal em cinco tempos históricos. Aproximações e distanciamentos. Rubenilson B. Teixeira