Como era ganhar na loteria em Natal no início do Século XX

Quando a noitinha apareceu, começou a chegar gente lá em casa. Minha mãe de nada sabia. De repente, constantes chiados denunciavam as subidas dos foguetões, que na sua rapidez, ganhando o espaço, pareciam querer explodir junto da lua.

Meu pai Cussy vinha precedido de uma pequena multidão. Parecia uma pequena procissão sem andor. O santo vinha a pé. Era o meu pai, o homem que havia acertado na Loteria Federal.

Cussy de Almeida (Recife, PE, 22/08/1879 – Natal, 12/08/1933). O pai de Waldemar de Almeida era originário do Estado de Pernambuco.
Corintha Henriques de Almeida (Catolé do Rocha, PB, 08/02/1885 – Natal, 
22/04/1959). Mãe de Waldemar de Almeida.

O bilhete inteiro que comprou fora contemplado com cinquenta contos de réis. Era dinheiro demais. Era o maior prêmio da loteria.

A casa foi pequena para agasalhar a “alegria” dos outros… Foi nessa noite de lua cheia que meu pai, sem querer, ganhou um título. Passaram a chamá-lo “coronel”.

Os festejos passaram da madrugada. A Rua Felipe Camarão nunca tivera até então, noite tão agitada. Os seresteiros já um tanto “altos” saíram cantando, acompanhados por muitos violões, cavaquinhos, flautas, uma ode que jamais nos foi possível esquecer – “Oh, lua cheia. Cheia de graça. Este teu bucho está repleto de cachaça…”

Minha mãe, sertaneja, acostumada com o pouco, dizia àquelas que iam lhe dar os parabéns: “Tanto dinheiro assim, não é coisa boa, não” e, ao retrucar uma ou outra frase, dizia: “custa 
muito a contar”.

Na verdade, cinquenta contos de réis naqueles idos de 1914 era muito dinheiro.

Meu pai se deu ao luxo de ir receber o prêmio no Rio de Janeiro. Levou consigo o filho mais velho que, para isto, fez roupa nova. Dois ternos de casimira feitos sob medida na melhor alfaiataria da cidade, localizada na Ribeira, de propriedade de “seu” 
Pelino Matos. A Alfaiataria Brasil, de Pelino de Matos, localizava-se no atual nº 169 da Rua Dr. Barata, vizinha à casa lotérica de Cussy de Almeida (nº 171).

“Seu” Pelino era o maior propagandista de sua alfaiataria. Andava sempre muito bem limpo, bem vestido, uma rosa ou um cravo na lapela, bengala com cabo de ouro e os sapatos sempre 
muito lustrosos.

Tinha o hábito engraçado de usar gravatas. Estas eram sempre tipo borboleta. Para cada dia da semana tinha uma de cor diferente. Na segunda-feira, por exemplo, “seu” Pelino usava a borboleta branca”, na terça-feira, trazia a de cor azul. As cores variavam até chegar o domingo. Essa sua mania chamava muito a atenção. Quando alguém perguntava qual era o dia da semana, a resposta vinha logo: “Veja a cor da borboleta de “seu” Pelino…

Naquele tempo, ir ao Rio de Janeiro não era coisa para todo mundo. O candidato a uma viagem ao Rio passava tempos e tempos se preparando. Tinha que fazer a clássica pergunta a todos os conhecidos, a todos os amigos – “quer alguma coisa para o Rio?”. Isso resultava que a bagagem do viajante crescia extra-ordinariamente. Até mantas inteiras de carne seca pediam que levassem para um senador ou para um deputado. Ai daquele que viajasse sem oferecer favores aos vizinhos, conhecidos ou parentes. Parecia mesmo que aquele que não fizesse a clássica pergunta não tinha possibilidade de comprar passagem que nunca foi a
prestações…

Falaram muito de meu pai, porque ninguém soube em que  dia ou em que navio embarcou. Principalmente aqueles interessados em mandar encomendas disso e daquilo para conhecidos e principalmente para os políticos da terra… A encomenda menor que pediam para levar era quase sempre meia dúzia de garrafas de manteiga da terra…

Um mês depois, pai e filho estavam de volta. Não que houvessem passado tantos dias na cidade de São Sebastião. A maior parte do tempo foi passado a bordo de um navio do Lloyd Brasileiro, que comia oito dias para ir e oito para voltar. 

Porto de Natal em 1934. Ao fundo e à direita é possível ver a torre da estação ferroviária da EFCRGN.

Meu pai voltou do Rio, como agente da Loteria Federal para o Estado do Rio Grande do Norte. Inaugurando a agência lotérica, deu-lhe o nome de Casa Esperança. Casa Lotérica de Cussy de Almeida: passou a Jorge Elísio, que passou a Natanael Luz. É o nº 171 da Rua Dr. Barata. Conforme ANDRADE, César. Comerciantes e firmas da Ribeira (1924-1989): reminiscências, 1989.

Dias depois trouxe a família para morar em uma casa da Avenida Rio Branco, a artéria principal da cidade. A moradia 
ficava quase vis-à-vis à casa de diversões de sua propriedade. Os Dias depois trouxe a família para morar em uma casa da Avenida Rio Branco, a artéria principal da cidade. A moradia 
ficava quase vis-à-vis à casa de diversões de sua propriedade.

E por duas vezes?

Meses depois, meu pai ganhava outro prêmio da loteria federal. Era a segunda vez que a sorte lhe bafejava.

Antônio Braga, um dos funcionários da Casa Esperança, tinha entre outras, a incumbência de examinar o recebimento dos bilhetes da loteria federal que vinham para a agência de Natal.

Tinha ordem para separar todos aqueles que terminassem em 53, 54, 55 e 56. O empregado abria o registrado do correio e guardava no cofre os bilhetes das terminações de gato. A quem 
lhe perguntava se era promessa, respondia achando graça, que era uma homenagem ao seu papagaio que uma vez por outro, mandava que jogasse no gato.

Braga, aproveitando um dos intervalos do cinema Royal, aproxima-se de meu pai e mostrando o telegrama com o resultado do número da loteria que terminava em 57, ajuntou: “O sr. tirou a sorte grande outra vez!”.

Prédio do Cinema Royal que ficava na esquina das Ruas Ulisses Caldas e Vigário Bartolomeu, inaugurado em 13 de outubro de 1913, o primeiro a abrir suas portas para o público no bairro Cidade Alta. No dia seguinte à inauguração, 14 de outubro, o jornal “A República” publicou a seguinte nota: ” Foi ontem inaugurado no bairro da Cidade Alta uma nova casa de cinema, de propriedade dos srs. Paiva & irmãos.

– Como, se a terminação é de jacaré e as minhas são de gato?

– No momento de separar os bilhetes, veio a terminação 57 colada com a 56. Recebendo o telegrama, verificando se havia algum prêmio por aproximação, senti o bilhete um tanto grosso e descobri que o da sorte grande estava colado nele.

– Foi?

Dizendo ao empregado que ficasse para assistir à projeção, as luzes se apagaram e continuou assistindo mudo, o cinema  mudo…

O Coronel Quincó ( Coronel Joaquim Anselmo Pinheiro. Ver LOPES, Ivanaldo. Oficiais da P. M. (1980)), como era conhecido o comandante da polícia estadual, ouvindo o diálogo entre patrão e empregado, não se conteve, perdeu a calma, ou melhor expressando, perdeu o gosto, e dizendo para Braguinha que fosse para as profundezas do inferno com tanta honestidade, levantou-se, subiu, foi até o camarote cativo de minha avó e disse à minha mãe que o marido havia acertado novamente na sorte grande. Não voltou mais ao seu lugar. Saiu espalhando a notícia, não sei, porém se com alegria ou sem alegria…

Meu pai, com o dinheiro ganho na loteria, começou a comprar terrenos. O primeiro foi uma grande quadra cheia de fruteiras, cercada de arame farpado, tendo uma casa ao lado e um portão na esquina onde numa tabuleta se lia: “Sítio São Cristóvão”. ( O Sítio São Cristóvão se localizava em toda a quadra que tem um dos ângulos 
na esquina da Avenida Deodoro com a Rua Potengi.) Em seguida comprou outra quadra em Petrópolis.

Interior do Sítio São Cristóvão. Raymundo (irmão de Waldemar) tendo nos braços Mozart (sobrinho).

Tal pai, não é tal filho

Ocupado no balcão da Casa Pátria, medindo uns metros  de chita para uma freguesa, um vendedor de bilhetes de loteria insiste para que compre a sorte grande. Enquanto lhe dizia que não podia atendê-lo no momento, continuava oferecendo, ditando a numeração e o bicho que a mesma representava. Não parava com a ladainha. Repetia as frases decoradas para tentar o comprador. 

Quando viu terminada a minha tarefa, botou-me o bilhete no meu bolso do paletó. Tiro-o e devolvo-o. Torna a empurrá-lo no meu bolso. Teimo em não aceitar. O bilhete custava dois mil-
-réis. O prêmio era de dezoito contos de réis. O quebrado ficava por conta do plano da loteria de Niterói, cujo bilhete inteiro só dava direito a dezoito contos. 
Não sei por que senti pena de dois mil-réis. Podia pedir ao caixa o dinheiro por conta do ordenado, mas em vez disso, amassei o bilhete e o joguei na gaveta do apurado da loja.

Fiquei esperando que o vendedor insistisse mais. Este, vendo entrar na Casa Pátria o major Caldas, pertinaz comprador de loteria, animou-se em vez de continuar solicitando, pediu que lhe entregasse ou o dinheiro ou o bilhete. Este saiu da gaveta direto para o bolso do major, que havia assistido toda a luta do bilheteiro.

Poucas horas depois recebi a tremenda notícia de ter perdido dezoito contos de réis. Se o major não houvesse entrado na loja naquele momento…

Nunca mais pude esquecer as pancadas da sorte na porta da fortuna. Porta que o destino não quis que abrisse. Ao muito mais tarde, anos depois, vim a saber que a oportunidade é como mulher careca…

O nosso maestro: biografia de Waltemar de Almeida [recurso eletrônico] / Cláudio Galvão – Natal: EDUFRN. 2019.

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