O porto do Passo da Pátria

O local que veio a ser conhecido como Passo da Pátria já no período colonial servia como importante porto de integração da cidade com o rio. Um dos primeiros registros de reformas desse logradouro aparece em um documento escrito pelo senado da câmara em 29 de maio de 1805, onde o Capitão Mór Lopo Joaquim era julgado em razão dos maus tratos e de sua maneira despótica de governar a capitania. Um dos argumentos da defesa eram os melhoramentos empreendidos por ele durante sua administração.

Uma dessas obras empreendidas pelo acusado demonstra claramente que já antes de 1805 havia uma clara preocupação da administração colonial em colocar a cidade do Natal em conexão fácil e plena com o rio Salgado.

Em 1847, a ladeira e porto do Passo da Pátria, então chamada de “Caminho Novo do Dr. Sarmento”, aparece no Plano Hydro-topografico do rio Potengi Atual Rua João da Mata. Inicialmente chamada de Ladeira da Cadeia, pois esta terminava atrás da Casa de Câmara e Cadeia de Natal, estreitando-se em um beco ao lado do prédio. Em 1911, a Cadeia é demolida para o alargamento da rua, perdendo-se o referencial toponímico. Sua demarcação no Plano é bastante específica e denota sua importância como ponto de desembarque de mercadorias desde datas remotas. Segundo Cascudo, em 1856 o Presidente da Província Bernardo de Passos auxilia com recursos um morador das cercanias, Manoel Bofe, para melhorar a ladeira.

Croqui feito a partir do plano Topo Hidrográfico de 1847. Demarcação em vermelho: Aterro do Salgado e Ladeira da Cadeia. As mercadorias desciam pelo rio Jundiaí e paravam no porto do Passo da Pátria, tradicionalmente utilizado para o abastecimento interno da capital, via Cidade Alta. Fonte: Produção do autor a partir do Plano hydrotopográfico do Rio Grande.
Foto Panorâmica da Cidade. Álbum Fotográfico de Bruno Bougard de 1904. A ladeira da cadeia prossegue até o rio, onde se podem ver barcos atracados. (Fonte: IHG/RN).

O morador alargou e rebaixou a ladeira, “desbastando o matagal, batendo a rampa que era áspera e quase a pique”. (CASCUDO, 1999, p. 251) Já nesse período, Macaíba e São Gonçalo despontavam como importantes praças comerciais, enviando seus gêneros pelo rio Jundiaí e Potengi até o porto do Passo da Pátria, conhecido então como porto da Cidade. (CASCUDO, 1999, p. 251) A intensa movimentação nesse local determinaria a fixação de casas nos arredores da ladeira e do porto, além de um feira muito concorrida, responsável pelo abastecimento interno da Cidade Alta.

Em 1866, o Presidente da Província José Meira resolve calçar o Caminho Novo do Dr. Sarmento, antiga Ladeira da Cadeia, visto a extrema importância desta para a integração da cidade com o rio. Só que decide investir em outra ladeira, que passava ao lado do Hospital de Caridade (atual casa do estudante),  segundo o presidente um local mais próximo e com maiores vantagens ( Atual Casa do Estudante. A rua mantém o mesmo nome: “Passo da Pátria”).

Foto Panorâmica da Cidade. Álbum Fotográfico de Bruno Bougard de 1904. A segunda ladeira que seria calçada em 1866 era acessível pela atual praça João Tibúrcio, prosseguindo pelo Hospital da Caridade, cujo telhado aparece na Fotografia. A intensa movimentação dessa via deixou marcas visíveis no solo. (Fonte: IHG/RN)

O local foi rebatizado como Passo da Pátria, (“para memoria do dia glorioso, em que as forças brasileiras transpondo o obstaculo de um grande rio calcarão pela primeira vez o territorio inimigo, aonde vingão a honra nacional, dei-lhe o nome de Passo da Patria, sob cujo titulo acabo de descrevêl-a.” (Exposição do Presidente José Meira de 01 de outubro de 1866. p. 14-15)) destinando-se 3:399$000 para o melhoramento da ladeira. O contratado, Roberto Francisco da Silva Barros devia encarregar-se de calçar a ladeira para que melhorasse o trânsito da cidade alta para o rio. Segundo o presidente, essa obra não era apenas um simples embelezamento, era uma importante obra de integração da cidade com o rio.

Em 1867, o Presidente pede recursos ao Governo Imperial para a construção de um cais no Passo da Pátria, já que a obra era um complemento indispensável para a ladeira. Em 1870 o cais do Passo da Pátria e o da Praça da Alfândega estão bastante deteriorados, o que faz com que o Presidente autorize orçamento para as despesas necessárias para o conserto dos dois.

Fotografia da escadaria de acesso ao Porto do
Passo da Pátria, atualmente dentro de residência particular no Bairro do Passo da Pátria. Foto: Bruno França.
Planta dos Estudos Preliminares de implantação da Estrada de Ferro Natal-Nova Cruz, 1878 (Detalhe). No desenho é possível notar a racionalização do acesso ao rio, através da retidão do caminho, numa área visivelmente menos íngreme, como aponta o maior distanciamento das curvas de nível. O acesso da rua está rigorosamente integrado à escadaria do porto. Fonte: Arquivo Nacional.

O cais da Alfândega desempenhava também um importante papel de integração – no caso do abastecimento interno – da cidade com o rio. Tanto que é proposto em 1873 o prolongamento deste até o Passo da Pátria, obra que não foi realizada pela falta de recursos da Província. Ainda em 1873, são feitos os seguintes melhoramentos: construção de um telheiro para abrigo das mercadorias no valor de 725$600 réis, construção de sarjetas para desviar as águas das chuvas por 72$000 e conserto dos degraus que ligavam o telheiro ao rio por 24$000.

Em 1878, o Passo da Pátria foi palco de uma contenda que demonstrou a rivalidade entre o bairro baixo e o bairro alto da Capital. Na verdade, esses locais funcionavam praticamente como duas cidades, com funções e valores bem distintos.

A cidade alta, núcleo original da cidade e centro do poder administrativo e religioso da Capital, reivindica para o 
Passo da Pátria o novo local da “Passagem do Salgado”, já que o antigo Aterro do Salgado estava bastante deteriorado e estava sendo construído um novo aterro, também na margem esquerda do rio, mas dessa vez “á partir do rio de fora até a cambóa do achado -, confronte ao Passo da Patria” (Relatorio do Presidente Manuel Januário Bezerra de 4 de dezembro de 1878. Obras Publicas, p. 14). A passagem, que partia do lado esquerdo do rio em direção ao Cais da Tavares de Lyra, trazia movimento para o bairro baixo e, consequentemente, lucros consideráveis para os comerciantes ali residentes.

Os principais comerciantes da Ribeira logo manifestaram seu descontentamento com a mudança, enviando um abaixo-assinado (com 22 assinaturas) para o presidente Manuel Januário Bezerra. Na falta de um engenheiro o presidente pediu um parecer da Câmara Municipal do Natal, que foi categórica em dar razão à cidade alta. 

Os argumentos da Câmara a favor da transferência da passagem para o Passo da Pátria são convincentes. Segundo o parecer do documento, os comerciantes do interior que vêm vender os seus produtos (gêneros de abastecimento interno) na capital não encontram um local fixo e com as devidas acomodações para expor seus produtos na Ribeira. Sabendo-se que já  havia um mercado público na cidade alta e um telheiro com uma feira já estabelecida no Passo da Pátria, e na impossibilidade financeira da província construir outro mercado na Ribeira, era mais viável transferir a passagem para o local com estrutura mais adequada.

A Câmara rebate também a argumentação dos habitantes do bairro baixo de que os “matutos”, o termo no documento refere-se aos comerciantes do interior que vinha vender seus produtos na capital. (Relatório do Presidente Manuel Januário Bezerra de 4 de dezembro de 1878. Obras Publicas, p. 15), teriam mais dificuldade para comerciar gêneros de exportação (açúcar, fumo, couro, etc.), já que não havia armazéns destinados para tal na cidade alta.

A Câmara Municipal afirma que… é de todos reconhecido que os gêneros de tal natureza são transportados por mar nas próprias embarcações dos compradores á seus armazéns, ou baldeados nos navios á carga, e se alguns destes gêneros, como o assucar é exposto a retalho, elle é conduzido em costas de animaes dos engenhos aquém do rio Salgado. (Relatório do Presidente Manuel Januário Bezerra de 4 de dezembro de 1878. Obras Publicas, p. 16).

Os comerciantes da Ribeira argumentam que a construção de um novo aterro é muito cara, sendo mais viável a manutenção do antigo. A Câmara replica afirmando que o local onde o antigo aterro foi construído é bastante instável, sofrendo a ação das marés diariamente, e que “tudo isto tem-se tornado um sorvedouro de dispendiosos concertos” (Relatório do Presidente Manuel Januário Bezerra de 4 de dezembro de 1878. Obras Publicas, p. 16) com os constantes reparos.

O local do novo aterro ficaria em um terreno bem mais estável, o que diminuiria os gastos com reparos, encurtaria bastante a distância e facilitaria a passagem, já que as correntezas seriam bem mais fracas. (Relatório do Presidente Manuel Januário Bezerra de 4 de dezembro de 1878. Obras Publicas, p. 16). Por fim, a Câmara não aceita o argumento dos comerciantes da Ribeira de que a mudança da passagem prejudicaria bastante o comércio do bairro, entendendo “que não se deve sacrificar o bem publico á interesses particulares, tanto mais que é ainda isto uma sem rasão, por quanto, ali existe a estação do fio elétrico e muito breve a da estrada de ferro á Nova Cruz, sendo além disto, o porto e ancoradouro de todas as embarcações.” (Relatório do Presidente Manuel Januário Bezerra de 4 de dezembro de 1878. Obras Publicas, p. 16).

Um pouco antes do Presidente receber o parecer da Câmara Municipal, chega em suas mãos um abaixo-assinado, representando oitenta habitantes do bairro alto, pedindo pela continuação das obras do novo aterro. O Presidente Manuel Januário resolve imparcialmente a contenda continuando as duas obras.

Segundo seu relatório, não se justificaria a paralisação nem do novo nem do antigo aterro, já que ambos empregariam os numerosos flagelados da seca, que nesse período migravam para a cidade em busca de sustento. Somando-se a isso, a província sairia ganhando, “sendo sempre de grande proveito publico e um elemento de progresso o augmento de boas estradas em busca de qualquer capital.” (Relatorio do Presidente Manuel Januário Bezerra de 4 de dezembro de 1878. Obras Publicas, p. 17).

Os melhoramentos do Passo continuam durante todo o final do século XIX, e até o início do século XX o telheiro e o cais continuavam com considerável movimentação comercial, de acordo com fotografias desse período.

Feira do Passo da Pátria. Cartão-postal do Início do Século XX. Mesmo após a construção da ponte férrea, a feira continuou com relativo
sucesso. Na foto aparecem o telheiro e o movimento das pessoas e mercadorias. (Fonte: Giovana Paiva. De cidade A Cidade.)
Passo da Pátria, cerca do ano de 1900. Fotografia do macaibense Fernando Pedroza (1886-1936), fundador da firma Wharton, Pedroza S.A, um dos pioneiros na indústria do algodão no Rio Grande do Norte.
#fatosefotosdenatalantiga #passodapatria
Acervo original: Fernando Gomes Pedroza (1919-2010). Acervo atual: Instituto Tavares de Lyra.
“Lugar modesto e humilde como simples e humildes são os ambientes pobres. No Passo da Pátria havia uma feirinha aos sábados a tarde. Nessa feirinha comprava-se jarras de barro, potes, panelas, além de bonequinhas de pano e de brinquedos de barro, como cavalinho, cadeirinhas, panelinhas. Havia também, grudes, dôces sêcos, raivas, sequilhos, milho, verde cozido e assado e um cem número de gulouzeimas além dos deliciosos alfinins.” (Lair Tinôco). Comunidade do Passo da Pátria. Foto: Esdras Rebouças Nobre. Fonte: Acervo SEMURB.
Foto aérea da Comunidade do Passo da Pátria.
Feira popular no Passo da Pátria em 1920. Em segundo plano a linha do trem em direção a Estação Ferroviária de Natal. O comércio popular foi removido pelo poder público por “não oferecer condições de higiene” o que resultou na completa destruição econômica daquela comunidade.
A Figura mostra o plano topo-hidrográfico de 1847 e a ampliação de parte dele, no qual estão identificados o Caminho Novo do Doutor Sarmento ou Rua da Cadeia, atual João da Mata, e sua ligação com o porto, assim como o Aterro do Salgado, ou a passagem da coroa, localizada do outro lado do Rio Salgado, ao qual voltaremos. A Figura ainda mostra as relações hidrográficas e terrestres de Natal com essas e outras localidades do litoral, em 1878.

DOS CAMINHOS DE ÁGUA AOS CAMINHOS DE FERRO: A construção da hegemonia de Natal através das vias de comunicação (1820-1920) por Wagner do Nascimento Rodrigues.

CASCUDO, Luiz da Câmara. História da Cidade do Natal. 3. ed. Natal: IHG/RN, 1999.

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