A Confeitaria Delícia

A partir do início do século XX, com a chegada da eletricidade a Natal, a noite proporcionou a organização de significativos negócios. Os bares, cafés, cinemas, teatros, confeitarias e casas de meretrícios passaram a movimentar a economia da capital potiguar. Dessa forma, a noite deixou de ser apenas um momento de descanso e passou a relacionar-se com as atividades de lazer. Os bares, confeitarias e cafés da cidade de Natal eram locais de reunião com amigos, que nos seus momentos de folga do trabalho, reuniam-se para os batepapos no Grande Ponto (Cidade Alta) e nas ruas e esquinas do bairro da Ribeira.

Apesar do bairro da Ribeira hoje ser considerado um espaço desterritorializado ou mesmo decadente, ele continua a existir no contexto urbano e histórico da Cidade de Natal, ainda que não mais exista como fora exaltado em momentos anteriores. Entende-se o processo de decadência como um fenômeno e desse modo é um campo profícuo para a pesquisa histórica.

A nossa fonte analisada para a elaboração desta publicação foi o livro de memória Acontecências e tipos da Confeitaria Delícia (1985), de José Alexandre Garcia, no qual o autor conta histórias de boêmios e de tipos que se reuniam e bebiam na Confeitaria Delícia, frequentada por estudantes, artistas, intelectuais, jornalistas, funcionários públicos e empresários. A obra é composta por uma reunião de crônicas publicadas no Jornal Dois Pontos, anexadas a outras histórias e transformadas em um livro de memória. Essas crônicas memorialistas são apoiadas nas recordações de José Alexandre Garcia e de seus amigos que viveram na cidade de Natal nos anos de 1940 e 1950. O cronista foi boêmio e conviveu com outros renomados de Natal. Frequentava a Confeitaria Delícia, no bairro da Ribeira, do português Olívio Domingues da Silva, que mantinha um reservado nos fundos do estabelecimento, separado do salão da confeitaria por uma cortina.

BOÊMIOS

No bairro da Ribeira, os boêmios visitavam vários bares, como a Confeitaria Delícia e o Tabuleiro da Baiana, situados na Praça Augusto Severo e o quiosque do cais da Avenida Tavares de Lira. A esquina da Avenida Tavares de Lira com a Rua Doutor Barata era um importante espaço de sociabilidade natalense nas décadas de 1940 e 50. Nesse espaço, havia a Confeitaria Avenida, nº. 56, e o Clube e Bar Carneirinho de Ouro, nº. 54, e, próximo dali, a Peixada Potengi. O Grande Ponto e a esquina da Avenida Tavares de Lira com a Rua Dr. Barata eram espaços de intensas relações sociais. Muitas pessoas procuravam seus bares e cafés para conversar, obter informações e notícias sobre os principais acontecimentos da cidade de Natal, do estado do Rio Grande do Norte e do mundo.

Definimos os boêmios, no século XIX, como poetas e modinheiros, amantes das serenatas e sujeitos mal vistos pela ―boa sociedade‖. Na primeira metade do século XX, os boêmios eram intelectuais e membros da classe média, em geral professores, literatos e jornalistas, que se encontravam nos bares e cafés da cidade de Natal para beber, conversar e compartilhar conhecimentos literários com seus iguais. Ao contrário dos poetas e modinheiros do século XIX, a maioria dos intelectuais do início do século XX teve sua formação nas faculdades de Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Muitos desses intelectuais viviam na fronteira do que seria a ―boa sociedade natalense‖ e a boemia. Eles exerciam atividades de funcionários públicos e jornalistas e frequentavam um ambiente seleto, reservado para si e seus iguais, como era o caso do Café Magestic. No entanto, o ato de vagar pela noite, em busca de bares abertos e de serenatas, permitia a aproximação do boêmio com a vadiagem.

Na década de 1950, os bares continuaram sendo espaços de vivência e de estímulos ao intelecto. No entanto, esses bares eram espaços mais ecléticos em relação aos bares das primeiras décadas do século XX, devido à presença de vários grupos de frequentadores, tanto boêmios quanto não boêmios. Os bares dos anos de 1950 eram lugares de convívio de diversos tipos de boemia. Muitos funcionários públicos (bancários, magistrados, professores, entre outros) frequentavam espaços reservados das confeitarias com objetivo de não serem vistos pela sociedade natalense. Eram os boêmios de fim de tarde, aqueles que depois do trabalho dirigiam-se aos bares, permanecendo algumas horas nesses espaços. Outros, porém, bebiam sem a preocupação de ser vistos pelas pessoas que caminhavam nas calçadas e associavam sua atividade intelectual com sua boemia. Esse grupo de boêmios não compartilhava com as concepções defendidas pelos membros das confrarias religiosas.

Na Confeitaria Delícia, os boêmios consumiam cachaças, cervejas, uísques, macieira, vinhos, conhaques e grogues. As bebidas eram acompanhadas de pratos de queijos, salames, empadas, pastéis, entre outros aperitivos. Olívio tinha uma latinha na qual depositava os pedidos dos clientes que, em sua maioria, ―pendurava a conta‖, ou seja, consumia bebidas, comidas e cigarros para depois pagar, mais precisamente no final do mês, quando recebiam seus salários. Essa situação era possível porque havia uma relação de confiança entre o dono do estabelecimento e seus fregueses. Esses eram homens da elite intelectual e política que tinham condições de saldar suas dívidas quando recebiam seus salários ao final do mês, pois estavam integrados ao mundo do trabalho. Além disso, vender ―fiado‖ era uma maneira de garantir a freguesia, quando essa não tinha condições de pagar a conta no momento de deixar o bar. Nessas circunstâncias, os proprietários de bar e estabelecimentos de estivas costumavam acrescentar despesas que não foram realizadas por clientes. A freguesia da Confeitaria Delícia, em tons de brincadeiras, acusava Olívio de aumentar os gastos, embora o memorialista José Alexandre Garcia (1985, 1995) garantisse que o dono da Confeitaria Delícia era honesto quanto às anotações na caderneta.

José Alexandre Garcia, autor do livro Acontecências e tipos da Confeitaria Delícia (1985), era jornalista esportivo e despachante aduaneiro. Garcia atribuiu aos boêmios a condição de trabalhadores, diferenciando-os dos vagabundos e vadios, homens sem ocupação regular no mundo profissional. Os boêmios eram os frequentadores de espaços seletos, como a Confeitaria Delícia na Praça Augusto Severo. Essa casa comercial possuía, nos fundos, um bar que reunia um grupo distinto de boêmios, homens letrados e de negócios, que sabiam se expressar verbalmente. Garcia também difere o boêmio do elemento nocivo à sociedade. Esses são os cachaceiros e os farristas, sujeitos que bebiam o dia inteiro, não se alimentavam adequadamente, frequentavam as salas de jogos de azar e as casas de baixo meretrício. Tais lugares estão nas páginas policiais dos jornais de Natal, sendo visitados assiduamente por populares que, embriagados, envolvem-se em brigas e discussões, cometendo atos de violência. O álcool é tido como a causa maior das agressões. Essas situações eram repudiadas pela sociedade natalense. Nesse sentido, os memorialistas procuraram definir a boemia no mundo da ordem e do trabalho, diferenciando seus participantes dos vagabundos, esses vistos
como prejudiciais à sociedade.

A Confeitaria Delícia. Foto: John R. Harrison
Milagre na Delícia
Vicente Serejo

Imagino hoje, coisa das 18 horas, na Ribeira velha de guerra, o poeta Newton Navarro fazendo a saudação ao mestre Olívio Domingues. Acordando com recordações de caravelas portuguesas que um dia pintou na parede da Confeitaria Delícia. E sobretudo para ouvi-las navegar nas marolas da Ribeira palafita.

“Imagino é Olívio Domingues, os cabelos brancos fazendo espuma na beira do mar da Confeitaria Delícia. Onde as lembranças retornam nos brindes de cerveja e de conhaque no buquet de vinhos antigos que dormiram nas prateleiras, onde adormeceram os sonhos dos poetas de lá.

“Imagino José Alexandre Garcia voltando aos caminhos da Ribeira silenciosa e carregando nos bolsos as histórias e estórias das boemias. Para recolher nas mãos as lembranças, todas perdidas ao longo de tantas vidas, como se a Ribeira abrisse as portas da alma e libertasse nossas almas todas.

“Imagino Carlos Lima, um misto de boêmio e editor, o cigarro quase caindo nos lábios, o riso aberto aos amigos. É como se existisse um corredor entre a Livraria Clima e a Delícia, onde Carlos passa todas as manhãs, todas as tardes, desde que aprendeu os caminhos de lá”.

LOCALIZAÇÃO

A Confeitaria Delícia encontrava-se na Praça Augusto Severo, n.º 81. A firma foi registrada na Junta Comercial do estado em 14 de setembro de 1940 pelo chileno Jacob Lamas e pelo italiano Amadeu Grandi, sócios no estabelecimento, criado com objetivo de comercializar artigos de confeitaria. O capital utilizado na abertura do negócio foi de cinco contos de réis, sendo dois contos e quinhentos mil réis aplicados por Lamas e dois contos e quinhentos mil réis investidos por Grandi. Os lucros ou prejuízos conferidos na contabilidade eram, anualmente, de responsabilidade de ambos sócios. O investimento empregado nesse negócio era modesto, em comparação ao capital utilizado na ocasião da abertura do Café, Bar e Bilhar Cova da Onça em 1916, equivalente a dez contos de réis.

O imóvel, onde foi estabelecida a firma Lamas &Grandi, consistiu em um espaço físico de poucos metros quadrados, situado na Ribeira. Na década de 1940, a Praça Augusto Severo era lugar de passagem para quem se dirigia às lojas da Rua Doutor Barata. Os estudantes da Escola Doméstica de Natal e do Grupo Escolar Augusto Severo compareciam à Confeitaria Delícia para comprar confeitos e chocolates. A casa comercial era um bom negócio, seus proprietários obtinham bons lucros.

A Confeitaria Delícia abria suas portas durante o horário comercial até as primeiras horas da noite. Consistia em um estabelecimento que recebia membros da elite da sociedade natalense. O cronista assim percorria o seu itinerário: ―[…] Confeitaria de Olívio Domingues […] até a casa do compadre Zé Arruda […] alcançar o meio da Avenida, no balcão hospitaleiro de Araújo […] e por fim o nosso BEIRA-RIO […]‖ (NAVARRO, 2011, p. 7.).

Confeitaria Delícia 1940 Praça Augusto Severo, 81. ANDRADE, Júlio César de. Comerciantes e Firmas da Ribeira (1924-1989), p.24.

EMPREENDEDORES

De acordo com o contrato estabelecido na Junta Comercial do estado do Rio Grande do Norte, a gerência da Confeitaria Delícia deveria ser exercida por ambos societários, que administrariam o negócio em comum acordo. No entanto, Lamas e Grandi não dirigiam seu estabelecimento, deixando o negócio nas mãos de empregados. O primeiro era alfaiate e o segundo representante comercial de empresas sediadas no sul do país (GARCIA, 1985, p. 16). A sociedade foi dissolvida em 14 de janeiro de 1942.

Ainda no início da década de 1940, a empresa foi comprada por Sinval Duarte Pereira, que empregou Olívio Domingues da Silva na condição de gerente. Durante sua administração, a casa comercializava mercadorias de boa qualidade, a exemplos de bombons, chocolates, frutas, presuntos, queijos, vinhos e outras bebidas, produtos nacionais e importados. No período da Páscoa, a confeitaria vendia ovos de chocolate, vinhos e caixas de bacalhau. Nas festas de fim de ano, eram comercializadas cestas de Natal, perus, vinhos portugueses, caixas de uvas, maçãs, peras, pêssegos, ameixas, castanhas portuguesas, castanhas do Pará, nozes, bombons sortidos, chocolates finos, queijos de minas, wafers, presunto, sardinhas e outros produtos importados. Durante a gerência de Olívio, foi aberto o reservado nos fundos da casa, que funcionava como bar, contando com três mesas, cada uma com quatro cadeiras, transformando a Confeitaria Delícia, nos anos de 1940, 50 e 60, em um espaço da boemia natalense.

Em 1948, Olívio Domingues adquiriu o estabelecimento por cento e vinte mil cruzeiros. O bar da Confeitaria Delícia reunia intelectuais, a exemplo de Luís da Câmara Cascudo, artistas, tais como Newton Navarro e o Alcides Cicco, comerciantes de Natal, como Amaro Mesquita e Osvaldo Medeiros, e funcionários da Recebedoria de Rendas, da Delegacia Fiscal, dos Correios, da Alfândega e do Banco do Brasil. Nenhum documento foi encontrado na Junta Comercial do Rio Grande do Norte sobre a compra da Confeitaria Delícia por Sinval Duarte Pereira e por Olívio Domingues, constituindo o livro Acontecências e Tipos da Confeitaria Delícia (1985) nossa principal fonte de informações.

Newton Navarro e Berilo Wanderley na Livraria Clima, de Carlos Lima, rua Doutor Barata, Ribeira À direita, cortado na foto, o português Olívio Domingues, proprietário da legendária Confeitaria Delícia.
“Meu pai, José Alexandre Garcia (camisa escura), na Confeitaria Delícia (Praça Augusto Severo, Ribeira). Em pé, o proprietário, português Olívio Domingues da Silva, Eduardo Alexandre Garcia.

O MURAL DE NAVARRO

Depoimento de Olívio Domingues da Silva para o CONFEITARIA DELÍCIA II, de José Alexandre Garcia

Newton era um boêmio autêntico. Poeta, artista plástico, sempre tratava a todos com muita distinção. Uma vez, chegou na confeitaria e disse que iria fazer um desenho lusitano na parede do reservado, no que concordei, de imediato.

No outro dia, estava lá ele, pronto para executar a obra. Eu improvisei uns andaimes com caixas de cerveja, pedi que fizesse a lista do material que necessitava e logo estava ele lá, lixando a parede para fazer o desenho que, inclusive, ilustra a capa do Acontecências e Tipos da Confeitaria Delícia, que José Alexandre Garcia veio a escrever anos depois.

Juntou gente para vê-lo riscar a parede. Até o governador do Estado, o caicoense monsenhor Walfredo Gurgel, no outro dia, chegou num carro oficial, acompanhado de três secretários, para apreciar o trabalho. Newton não me cobrou um tostão pelo serviço. Tudo o que me custou foram algumas cervejas que lhe servi enquanto trabalhava.

Mas valeu a pena. Naquele dia, o apurado bateu todos os recordes. Foi uma atração especial… Todos queriam ver Newton Navarro trabalhando.

………………………………

CELÉ, AJUDANTE DE PINTOR

José Alexandre Garcia, in Acontecências e Tipos da Confeitaria Delícia

Quando em 67, Olívio procedeu reforma no prédio da Augusto Severo, 80, e inaugurou novas instalações, Newton Navarro, cumprindo prometido de longas datas, resolve dar início a mural no salão principal, sobre motivos lusitanos. Compra tintas, os pinceis, arranja uns cavaletes, encomenda um litro de uísque e convoca Celé, que acidentalmente ia entrando, para ajudá-lo.

A ajuda resumia-se em Celé passar às mãos de Newton os pincéis que ele pedia depois de mergulhá-los nas devidas latas. Um litro de uísque foi pouco. Pediram outro, e outro.

– É preciso buscar inspiração! Justificava Navarro para o Português, que se resolvera patrocinar os últimos litros com a anuência solene de Celé, que, a esta altura, se sentia um pintor dos bairros boêmios de Paris e chegava a dar palpites!

No final da tarde, o mural estava concluído, embasbacando a todos. Uma beleza, uma obra de arte!

E prontos estavam os pintores. Sim, porque a partir deste dia, Celé se considerou entendido em arte, pintor ele também. A obra estava ali, pra quem duvidasse, verificar.

Nos momentos de reminiscências, não dava sequer o lugar devido, a prevalência, a primazia a que Newton tinha direito como autor da obra.

– Na tarde em que eu e Newton pintamos este mural… E contava a história.

Quando presente, Newton confirmava, muito sério.

– Se não fosse Celé, não sei o que seria de mim. Ele sabe misturar muito bem.

Não sei se ele se referia à água no uísque ou aos pincéis nas tintas.

O RESERVADO

O Bairro da Ribeira já possuía sua rotina urbana. Diante da sua expansão, a Confeitaria Delícia (esquina da Dr. Barata com a Rua Saché), foi ponto de encontro dos intelectuais de Natal na década de 60 e 70, onde facilmente se encontrava e cumprimentava Câmara Cascudo, Luis de Barros, Roberto Freire, etc.

A Confeitaria Delícia era mais dedicada ao comércio de artigos de confeitaria e de produtos importados do que ao serviço de bar. O reservado de Olívio Domingues era um lugar frequentado por intelectuais, comerciantes e funcionários públicos da cidade do Natal, homens de comportamentos adequados aos padrões desejados pela sociedade natalense. A clientela do ambiente era conhecida pelo dono da casa. Nas conversas sobre política, futebol ou mesmo banalidades do dia a dia, Olívio sempre participava, opinando ou sorrindo. Ele mantinha uma relação de amizade com muitos de seus fregueses. Em dias de festa na cidade, Olívio abria meio contrariado, o olho na freguesia desconhecida, os bêbados que dormiam nas mesas, emporcalhavam o sanitário e que, a qualquer descuido, dava o fora sem pagar.

O dono da Confeitaria Delícia preferia seus habituais clientes. Segundo Garcia, os reservados eram abertos em estabelecimentos de estiva e em confeitarias porque era feio beber em Natal,

“[…] mesmo que fosse uma simples cerveja; ao contrário de Recife, onde os bares serviam os fregueses nas calçadas […]” (GARCIA, 1985, p. 55).

O reservado era um espaço masculino e privado, apropriado pelos grupos sociais que o ocupavam. A entrada da confeitaria era um lugar voltado para a rua, portanto, próxima da esfera pública, considerando a calçada um elemento intermediário entre o imóvel e a rua. Esta é vista como lugar de passagem, permitindo o trânsito do indivíduo ao trabalho, à casa, às compras ou ao bar. Alguns boêmios, a exemplo do cronista Newton Navarro, não temiam beber em público, mas outros preferiam os reservados, lugares fechados, privados, resguardados dos olhares estranhos dos caminhantes.

Luís da Câmara Cascudo e amigos no reservado da Confeitaria Delícia O ambiente é pequeno e apertado. A mesa está bem próxima às prateleiras.
Fonte: Fotografia de Jaeci Galvão. Disponível em: http://elfikutten.blogspot.com.br/2012/04/camaracascudo-uma-conversa-sobre.html. Acesso em: 07 fev. 2012.

Luís da Câmara Cascudo: embora pela descrição autor, possa parecer o contrário, Cascudo era frequentador do Bar e Confeitaria Delícia (praça Augusto Severo) e outros bares da Ribeira. Decerto não aparecia pela esquina em foco.

JOSÉ ALEXANDRE GARCIA, O MEMORIALISTA DA BOEMIA

Everaldo Lopes, HOMENAGEM

Tribuna do Norte, 09 de fevereiro de 1997

O CRONISTA RETRATOU O BAIRRO DA RIBEIRA ENTRE OS ANOS 40 E 60 COM O LIVRO “ACONTECÊNCIAS E TIPOS DA CONFEITARIA DELÍCIA”

Para quem deseja escrever sobre a figura de José Alexandre Garcia é indispensável conhecer os dois lados do gordo Alex: o desportista /cronista esportivo e o boêmio inveterado. Essas três facetas ele soube desempenhar a um tempo só, até porque as três corriam mais ou menos paralelas.

Nas conversas da Confeitaria Delícia, colhia muitos subsídios para a coluna diária que mantinha na imprensa e a vida boêmia vinha depois dos afazeres no seu escritório de despachante aduaneiro, na travessa Equador (hoje já com o nome de travessa José Alexandre Garcia). Era ali mesmo que preparava o material de jornal, que mandava pelo seu fiel escudeiro Cícero Graciano. Essa vidinha mansa Alex conseguiu manter durante anos, com uma paciência que parecia até que o tempo não ia passar nunca.

Nunca foi de ostentações, tanto, que jamais cogitou tirar seu escritório da acanhada travessa Equador, tão estreita, onde mal passava um automóvel, instalações modestas, uma velha Remington que usava para escrever a coluna diária, “Dizem por aí”. No mais, limitava-se a assinar despachos que eram datilografados por um funcionário.

Dali, final de tarde, caminhava mais alguns metros e dava de cara com a Confeitaria Delícia, que ficava em frente à velha Rodoviária da Ribeira, onde o papo estendia-­se noite a dentro.

Se à noite tinha futebol ou futebol de salão, Alex bebia no máximo até três cervejas, porque a atividade de cronista esportivo e cartola do esporte também o seduzia.

ETERNO AMANTE – Zé Alexandre amava Natal e sua gente. Aqui cresceu e fez amigos, foi pai e avô. Antes mesmo do movimento ambientalista de hoje, Alex era um defensor intransigente do verde, crítico da extinção dos campos de várzea consumidos pelo boom da construção civil.

“A velha Ribeira de palafita, antigo alagadiço onde havia uma olaria, um plantio de canas e bananeiras, abrigou, depois de transformada em caminho de canguleiros que debandavam à cidade alta dos xarias, uma praça com uma pontezinha de madeira.”

“Natal era a cidade modorrenta e provinciana, 40 mil habitantes espremidos entre Ribeira e Cidade Alta, o resto era a pobreza franciscana das Rocas, os sítios do Tirol, a mata de Petrópolis, o Alecrim ensaiando os primeiros passos”.

“Assim como as pessoas, as cidades têm o seu instante de afirmação, o seu dia de superação, o empurrão providencial, o chamado passo à frente, decisivo e consagrador.”

“Como quem queria recuperar o tempo perdido, Natal nunca mais parou de crescer, de expandir-se, de ampliar-se em novos horizontes, de abrir novas avenidas e das avenidas multiplicar-se em novos bairros, povoando-se de belas residências.”

PERSONAGENS FANTÁSTICOS QUE POVOARAM A RIBEIRA

Ninguém contou estórias de boêmios tão bem como Alex no seu livro “Acontecências e tipos da Confeitaria Delícia”. Diz bem Celso da Silveira no prefácio: “Alexandre conta estórias daqueles personagens fantásticos que povoaram nos fins de tarde esse cenário descontraído, esse pedaço querido do território sentimental e estóico da velha Ribeira.” E conclui: “José Alexandre, com mais de 100 quilos de fleugma, muitos dos quais a cerveja foi a grande culpada, resgata com seu livro essa memória que iria perder-­se com o tempo. Vamos todos, xarias e canguleiros, seus amigos, depressa a esse apetitoso livro cheio de milonga do cabuletê. Saravá e anauê.” Celso da Silveira.

PERSONAGENS – Ninguém escapa de Zé Alexandre, uns mais, outros menos, e os que conseguiram “passar batidos” têm seus nomes citados, com a sugestão do autor de que alguém dê andamento ao assunto, quem sabe em um outro livro. A essas alturas, infelizmente, não mais escrito por ele.*

Uma das figuras folclóricas foi Zé Areia. Num fim de tarde na confeitaria. Quando Café Filho foi guindado à presidência da República, nos anos 50, ele viajou ao Rio para tentar um emprego. Ao falar com o presidente, este, após duas horas de chá de banco, ofereceu um emprego de seringueiro na Amazônia. Como não soubesse o que era seringueiro, foi informado de que era emprego de tirar leite de pau. Irritado, Zé Areia disse um desaforo ao oficial de gabinete e viajou de volta a Natal. Aqui, começou a baixar o cacete no presidente, nunca o perdoando pela indelicadeza com um humilde conterrâneo.

A figura simpática e receptiva de José Alexandre Garcia habitava praticamente dois mundos: o do esporte, devido a sua atividade como cronista conceituado, e quase sempre dirigindo alguma federação ou mesmo a ACERN e o da boêmia, quando o assunto e os personagens eram outros, completamente diferentes. O horário de trabalho era dedicado ao escritório.

Apesar de formado em advocacia, não exercia a profissão. Na Confeitaria Delícia, juntava várias mesas e lá permaneciam por muitas horas amigos como Mozart Silva, Moisés Villar, Ferreirinha, Newton Navarro, Etienne Reis, Carlos Lima, Eider Reis, Zé de Brito, João Machado, Wilson Maranhão, Aldair Villar, entre tantos amigos que possuía.

Entenda-se, ao ser tratado por boêmio, que Alex não era um beberrão. Dosava sua cerveja, que era muito mais o pretexto para intermináveis conversas de mesa de bar. Sabia beber como ninguém. É o que se diz hoje de beber socialmente.

O outro Alex era o da turma da imprensa e do esporte. Quando presidiu a Federação Norte-riograndense de Futebol de Salão, ninguém foi mais responsável nem ousado nas promoções grandiosas. Presidindo a ACERN, também foi arrojado. Gostava de promover grandes temporadas com clubes de outros estados. Tinha uma liderança incrível sem ser arrogante. Gostava de dirigir, de presidir, e, talvez, por isso, jamais tenha desempenhado qualquer emprego público, onde, com certeza, ficaria obrigado a cumprir ordens “lá de cima”.

SABER SER LEAL AOS AMIGOS

Uma das grandes virtudes de Zé Alexandre foi a extrema lealdade para com os amigos. Era impossível ouvir dele qualquer crítica a um companheiro. Numa mesa de bar, podia até haver, partindo de terceiros, mas se não defendia de imediato o colega atingido, não se esperasse qualquer endosso de sua parte. Preferia até mudar de assunto. Alex também sabia ser grato aos amigos.

Uma das passagens mais pitorescas vividas por Alex foi quando Firmino Moura, no governo do Mons. Walfredo Gurgel, fez uma visita ao então secretário de Finanças, tributarista José Daniel Diniz, e lançou o seguinte apelo:

– Daniel, vim aqui pedir um favor: me demita do cargo de Fiscal de Rendas e ponha Zé Alexandre no meu lugar…

Claro, Daniel Diniz ficou surpreso com proposta tão estranha, até porque não seria fácil tomar medida tão descabida. Mas houve um jeitinho bem brasileiro e Alex foi nomeado. Não como Fiscal de Rendas, mas para o setor jurídico do IPE. O gesto de grandeza de “Mino” nunca foi esquecido.

No seu livro “Gol de Placa”, Zé Alexandre cita essa passagem como forma de gratidão a um grande amigo, já que, naquele tempo, a situação financeira dele era das mais difíceis, com a agência de despachos marítimos rendendo pouco, as despesas crescendo.

OS ESQUECIDOS – Como último capítulo do seu livro retratando a Confeitaria Delícia, Alex faz um reparo: é a possível estranheza do leitor quando constatar que figuras tradicionais do bairro da Ribeira não aparecem no seu trabalho. Cita o mais badalado do bairro que foi Álvaro Limarujo, Luiz Tavares, Pedro “Garrote”, os irmãos Chico e Antônio Lamas, Rômulo Leite, Berilo Wanderley, Zé Resende, o velho Fulco, Manoel Maria Costa, Almeida, da Força e Luz, e Lucas Siqueira.

*José Alexandre faleceu a 02 de fevereiro de 1997. Nascido de uma família financeiramente bem situada, não ficou rico nem pobre com seu escritório de despachante aduaneiro. Com a esposa Isabel, teve cinco filhos, sendo dois homens e três mulheres, que lhe deram 11 netos. Alexandre partiu aos 71 anos.

FREGUESIA

A Confeitaria Delícia, o Clube e Bar Carneirinho de Ouro, o Bar e Confeitaria Cisne, o Bar Natal, o Bar Bolero entre outros estabelecimentos eram espaços tolerados pela sociedade natalense. As confeitarias Delícia e Cisne, embora ambas possuíssem um reservado com função de bar, atendiam a outros clientes que chegavam a casa procurando bombons, doces, latas de ameixas, entre outros produtos.

A Confeitaria Delícia era um dos pontos de encontro da mocidade, a Sorveteria Eldorado e a coalhada ou caldo de cana do Majestic, na Cidade Alta, também eram atrações.

A freguesia da Confeitaria Delícia era composta por grupos de amigos que se encontravam assiduamente no estabelecimento, mantendo relações pessoais com o dono da casa. Na confeitaria, os boêmios conversavam sobre as fofocas do dia a dia, os casos passionais, os resultados dos jogos de futebol, as ocorrências policiais, as farras, os filmes, os escândalos e a política do estado do Rio Grande do Norte. Contavam anedotas, cantavam e brincavam, ou seja, era um espaço festivo das relações interpessoais. Segundo Garcia:

Bar é sinônimo de alegria e alegria requer música, violão, seresteiro, sanfoneiro, poesias. Zé Menininho, ali, fazia ponto […]. Podia não tocar bem, mas o seu jogo de cena, as caretas, os trejeitos completavam a execução e valiam o espetáculo. Foi o precursor do atual cantor de televisão. Os que não cantam nada, mas como se remexem! (GARCIA, 1985, p. 34.)

O sanfoneiro Zé Menininho tocava em praias da cidade de Natal e no bar de Olívio sempre que era requisitado pelos fregueses. Além dele, compareciam, na Confeitaria Delícia, violonistas, a exemplo de Roldão Botelho, o intérprete de bolero, Antônio Cabral de Brito, e o Lobisomem da Redinha. Esse cantava um repertório à base do saudosismo, as canções de Vicente Celestino, Gastão Formanti e Augusto Calheiros. A música não faltava para animar os encontros na Confeitaria Delícia, constituindo um elemento da boemia natalense da década de 1950. Outros estabelecimentos, a exemplo da casa de meretrício de Maria Boa, também contratavam músicos para animar a noite.

No livro Acontecências e tipos da Confeitaria Delícia (1985), José Alexandre Garcia escreve, de forma romantizada, os acontecimentos ocorridos na casa comercial de Olívio Domingues da Silva que marcaram sua memória. O autor transmite a ideia de que as relações interpessoais estabelecidas nesse espaço boêmio eram cordiais e harmoniosas. No entanto, seus fregueses bebiam e discutiam diversos assuntos, entre esses, futebol e política. No ano de 1960, as rivalidades políticas entre os partidários do deputado federal Aluízio Alves e os do governador Dinarte Mariz ficaram acirradas após esse último indicar o nome de Djalma Marinho a candidato, pela UDN, a governador do estado de Rio Grande do Norte. Aluízio Alves saiu candidato pelo PSD, formando com o PTB, PDC e a dissidência da UDN uma coligação denominada Cruzada da Esperança e venceu essas eleições. No momento de discussão política e defesa de seus candidatos, os ânimos ficavam exaltados, chegando a desencadear atitudes extremas. As vésperas de clássicos do futebol, como as partidas entre ABC e América, também entusiasmavam os clientes dos bares e reservados das confeitarias a discutirem acerca da modalidade e defenderem seus clubes esportivos. Dessa maneira, as relações interpessoais apresentavam-se harmoniosas em alguns momentos, mas, em outros, tornavam-se conflitantes.

Em suma, o bairro da Ribeira, famoso por seus luxuosos estabelecimentos comerciais, já não existe mais. Chegou ao fim, juntamente com o fim de alguns estabelecimentos que fizeram sua fama. Já não há mais café no Cova da Onça, narrado por Aderbal de França, nem as conversas acaloradas de senhores distintos, aclamadas por Djalma Maranhão, no Café Globo. Na Confeitaria Delícia, onde as mocinhas de família compravam suas guloseimas, “até as prateleiras estavam desfalcadas. Não mais se viam os bombons finos, os artigos importados, os bons vinhos, as conservas estrangeiras, os fiambres, as uvas, as peras, as maçãs” (GARCIA, 1989, p. 46). Esta se viu transformada em um sórdido bar.

FONTES SECUNDÁRIAS:

GARCIA, José Alexandre. Acontecências e tipos da Confeitaria Delícia. Natal: Clima, 1989.

GARCIA, José Alexandre. Confeitaria Delícia II. Natal: Clima, 1995.

SILVEIRA, Celso da. Introdução in GARCIA, José Alexandre. Acontecências e tipos da Confeitaria Delícia .Natal: Clima, 1989.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS:

CANTOS DE BAR: sociabilidades e boemia na cidade de Natal (1946-1960) por Viltany Oliveira Freitas.

O Bairro da Ribeira como um palimpsesto: dinâmicas urbanas na Cidade de Natal (1920-1960) / Anna Gabriella de Souza Cordeiro. – Natal/RN, 2012.

Dos bondes ao Hippie Drive-in [recurso eletrônico]: fragmentos do cotidiano da cidade do Natal/ Carlos e Fred Sizenando Rossiter Pinheiro. – Natal, RN: EDUFRN, 2017.

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