Natal na rota da 1ª Travessia aérea noturna do Atlântico Sul
O “Argos”, sob a direção do Major Sarmento de Beires, e tendo como auxiliares de navegação os militares e patrícios Jorge de Castilho e Manuel Gouveia, foi um dos aviões mais festejados que tocaram em Natal, por serem seus tripulantes portugueses. Tendo decolado de Bolama às 17 horas do dia 12 de março de 1927, amerrissou 150 quilômetros adiante. Recomeçou o voo para também pousar em Fernando de Noronha, no dia 18 de março pelas 10:15 às 12:55, contudo, do mesmo dia, estava em Natal, saudando a população em nota distribuída á imprensa: “A tripulação do avião” Argos “saúda o povo brasileiro que tão intensamente sabe vibrar sob a impressão resultante de qualquer tentativa levada a feito por homens dessa raça única e que pertencem os povos brasileiros e portugueses.
Que o nosso esforço possa contribuir para o estreitamento da união luso-brasileira, tal é a nossa aspiração”. Depois amerissaram no rio Potengi e prenderam seu hidroavião em boias defronte á pedra do Rosário. Seu feito foi haver realizado a travessia Atlântica à noite. O acontecimento ocorreu vinte dias após a passagem do “Santa Maria”, a cidade de Natal. O Argos era um hidroavião bimotor, modelo alemão Dornier DO J Wall. A nave pertencia ao governo português.
Foram recebidos com muita atenção pela população de Natal. Os aviadores lusos estiveram em várias recepções. A mais importante foi no palacete do comerciante Manoel Machado, o mais abonado da cidade naquela época e nascido em Portugal. No domingo, dia 20 de março, pelas oito da manhã o “Argos” partiu. Em Recife, em uma entrevista ao Diário de Pernambuco, Beires declarou que “Natal era um excelente ponto para aviação”.
Depois, Sarmento de Beires autografou um álbum de Sérgio Severo, filho de Augusto Severo, com a significativa mensagem: “Se não tivesse havido toda essa coorte de sacrifícios, entre os quais Severo fulge com cintilação imorredoura, as asas humanas não poderiam hoje singrar no espaço com segurança que nos permitiu atravessar o Atlântico numa noite inteira de voo . Pelas 16 horas, um após outro, suavemente, baixaram no Potente, amarrando em boias frente á pedra do Rosário.
A Travessia
No dia 16 de Março, o Argos deixou os Bijagós e rumou a Sudoeste com o céu limpo e o Sol a esconder-se no horizonte. Uma hora depois «a noite fechara por completo, e as águas glaucas do Atlântico onde afloravam ainda alvuras de espuma, perdiam um pouco da sua tonalidade azul-da-prússia, atingindo as tenebrosidades inquietas do quase negro».
As primeiras horas de voo decorreram sem sobressaltos. Jorge Castilho alojado no espaço minúsculo do compartimento da proa efetuava as primeiras observações dos astros com um sextante semelhante ao de Gago Coutinho, no qual tinha ele próprio introduzido adaptações, uma lâmpada para iluminar a bolha de nível e uma pega especial para permitir a utilização da mão esquerda, deixando a direita livre para escrever:
«Sentado na minha posição normal de costas para a marcha, tinha na minha frente, na antepara que me separava dos pilotos, uma pequena estante de contraplacado para arrumação dos meus livros. Na parede da esquerda, uma tábua em que estavam fixadas várias tabelas. À direita, no chão, a caixa do sextante e a dos cronómetros. Ao meu lado uma tábua que posta em cima dos joelhos me servia de mesa de trabalho. A um canto, um saco com bóias de fumo. Em vários outros alojamentos diferentes, pequenos objectos como lápis, borracha, transferidores, compasso, régua, cigarros, fósforos, relógio com a hora oficial de bordo – hora de Greenwich – e alguns retratos a alegrar o ambiente.»
Com um ligeiro vento de frente e a voar a pouco mais de 60 metros sobre o oceano o Argos teve o primeiro sobressalto pelas 23 horas após o tenente Gouveia ter inspecionado os motores referindo ao major Beires:
«uma das bombas Martin do motor de trás, deixou de funcionar. Parei-a para evitar a perda de gasolina.»
Ficaram a funcionar apenas três bombas e ficou também a dúvida sobre quanta gasolina se teria derramado com a avaria e o que isso poderia significar para o êxito ou fracasso da viagem.
À meia-noite Castilho enviou a Beires o primeiro balanço de voo, 850 quilómetros percorridos à média de 142 quilómetros por hora com o consumo de 1136 litros de gasolina. Beires considerou as informações desconsoladoras mas ainda na margem de segurança.
Às duas horas da manhã surgem os primeiros sinais de fadiga:
«Começamos a sentir cansaço. Castilho muda frequentemente de posição, já não sabendo como arrumar o corpo, examinando constantemente o céu, em busca de astros de observação mais fáceis. Sinto os braços doloridos, e uma vaga sonolência começa a invadir-me».
Às 3 horas, uma massa de nimbos ameaça com ligeiros chuviscos. Para combaterem a fadiga e o sono a tripulação mastigou algumas nozes de cola. Em meia hora o tenente Gouveia conseguiu resolver duas situações complicadas, uma fuga de gasolina resultante da fratura de uma braçadeira e uma avaria na canalização da água do arrefecimento de um dos motores:
«Assim, por duas vezes o Argos esteve em riscos de amarar em pleno Atlântico, no meio das trevas. Sem a presença de Gouveia, talvez pairasse sobre o seu destino o mesmo mistério desolador que pairará eternamente sobre tantos aviadores desaparecidos no mar». Às 4 horas da manhã, a chuva começou a aumentar e uma hora depois o Argos foi envolvido por uma violenta tempestade. A bordo viveram-se momentos difíceis:
«A chuva encharca-nos, e correntes aéreas desencontradas lutam no interior da avalancha aquática.»
O Argos sobreviveu
Às 6 horas o dia começou a nascer, e minutos depois sobrevoou os penedos de S.Pedro e S. Paulo.
«Impressiona-me a ideia de que só dois aviões e ambos portugueses, o Lusitânia e o Argos, por aqui voaram. Vem-me ao espírito a lembrança de que em todo o avião português deveria haver um exemplar de ‘Os Lusíadas’. Gago Coutinho, alma de poeta, não o esqueceu ao organizar a biblioteca do Lusitânia.»
Pouco depois das 8 horas, passaram o Equador e avistaram o primeiro sinal de vida na imensidão do oceano, um navio navegando para Nordeste.
Às 10 horas Castilho fornece a Beires mais um balanço de voo, 150 quilómetros de velocidade média, apenas 500 litros de gasolina e a uma distância de 200 quilómetros da Ilha de Fernando Noronha e a 600 do Natal. Não era possível chegar à costa brasileira, seriam 5 horas de voo e o combustível só permitia pouco mais de 2 horas. Sarmento de Beires, decidiu rumar a Fernando Noronha. No meio da solidão do Oceano, mudaram de rumo. Mais do que nunca a precisão da navegação teve que ser eficaz para descobrir a pequena ilha brasileira situada a 400 quilómetros do continente brasileiro:
«A corrida para Fernando Noronha começou enervante, olhar perscrutando o horizonte, corações batendo numa cadência inquieta. O mar de novo ermo, de novo imenso, de novo ameaçador, tem largas ondulações que quase roçam a coque do avião, tão baixo voamos.»
Às 11 horas restam 360 litros de gasolina, pouco mais de uma hora de voo, pelos cálculos faltavam 150 quilómetros:
«A ilha tem dez quilómetros na sua máxima extensão, a visibilidade horrível, e podemos vará-la facilmente.»
Ao meio dia Beires sobe para os 800 metros e vê ao longe um contorno muito ténue, pareceu-lhe a ilha e rumou para lá. Minutos depois confirmou e às 12 horas e 20 minutos o Argos amarou suavemente na baía de Santo António. Nos depósitos, já só restava combustível para poucos minutos de voo.
«Não tínhamos atingido a Costa do Brasil, mas tínhamos realizado a mais longa etapa controlável até hoje realizada em hidroavião, percorrendo, de facto 2595 quilómetros desde a Guiné a Fernando de Noronha. Castilho acabava de confirmar ao Mundo, com uma noite inteira de navegação astronómica – feito inédito nos anais da navegação aérea – o valor do sextante que Gago Coutinho inventou».
O Argos tinha voado sem escala 18 horas e 12 minutos. Até à altura o mais longo voo noturno efetuado na história da aviação. O Atlântico Sul ficou a pertencer definitivamente à memória da aviação portuguesa.
No dia 18 de Março, os portugueses deixaram Fernando de Noronha, rumo ao Natal num voo tranquilo que durou pouco mais de 2 horas. À chegada foram recebidos por uma multidão eufórica.
De Portugal chegou apenas um telegrama de Gago Coutinho. Do Governo português, o silêncio:
«A nossa sensibilidade sofre e a nossa inteligência pressente.»
A instabilidade política que se vivia em Portugal, relegou para um lugar injustamente secundário a magnífica viagem do Argos. No Brasil os aviadores portugueses, receberam convites para escalarem o Recife e a Baía, escalas não previstas que atrasariam a viagem para o Rio e o prosseguimento para o Chile e Pacífico.
Sarmento de Beires não querendo assumir a responsabilidade, pediu instruções à Arma de Aeronáutica Militar, que em telegrama de 20 de Abril recomendou as escalas nas duas cidades brasileiras para não ferir susceptibilidades, no Brasil.
Os aviadores que tinham partido de Alverca para darem a volta ao Mundo viram-se envolvidos numa missão diplomática. Enquanto o telegrama de felicitações do Governo de Portugal tardava em chegar, foram recebendo felicitações dos Governos Francês, Espanhol, Italiano e Brasileiro.
No Recife danificou-se um dos hélices. O atraso provocado pela dificuldade de substituição, fez passar a data aconselhável por motivos meteorológicos para voar no Pacífico.
Só quando chegaram ao Rio de Janeiro receberam um telegrama do Governo Português a sugerir que o Argos regressasse imediatamente via Cabo Verde e Madeira. A sugestão do Governo era pouco aconselhável devido às más condições meteorológicas. Sarmento de Beires aconselhado por Gago Coutinho optou por regressar via América do Norte, Terra Nova e Açores, regresso este que se iniciou no dia 1 de Junho.
No dia 5, já no regresso, descolaram às 9 horas da manhã de Belém do Pará rumo às Guianas. Às 12 horas e 25 minutos dobraram o Cabo Norte. Pouco depois uma janela de inspeção da asa esquerda abriu-se e a deslocação do ar provocou um rasgão de grandes dimensões na tela.
Sarmento de Beires amarou de emergência. Castilho determinou o ponto, 2.° 41 ’ de latitude norte, 50.° 29’ de longitude oeste, a 40 quilómetros da costa.
O tenente Gouveia ainda conseguiu reparar a tela, mas o estado do mar não permitiu a descolagem. Um rombo no flutuador direito ditou a sentença:
«O Argos estava morto. Ingrata, bem ingrata missão, a de conduzir um avião de raide! Porque ninguém avalia, ninguém compreenderá nunca, a tortura cruciante, a punhalada dolorosa desses instantes em que estupidamente, brutalmente, o destino põe um ponto final nos nossos sonhos, fazendo-nos estalar nas mãos, os músculos metálicos da aeronave que conduzimos.»
Às 18 horas a tripulação foi recolhida por uma canoa de pescadores. No dia 27 de Junho, Sarmento de Beires, Jorge Castilho e Manuel Gouveia chegaram a Lisboa a bordo do navio “Hildbrand”:
«Embora, de facto, não esperássemos festejos, não deixou de nos impressionar a atmosfera glacial e quase irónica que nos envolveu ao chegar.»
Estava-se em 1927, Portugal vivia o fim dos tempos turbulentos da 1ª República e comemorava o 1.° ano da Revolução de 28 de Maio de 1926. Talvez por este motivo tenha sido quase ignorado um dos mais importantes voos da história da aviação.
Pouco tempo depois chegou o reconhecimento, a tripulação foi condecorada com a Torre e Espada que hoje ocupa um merecido lugar de destaque no Museu do Ar. Como escreveu Sarmento de Beires só a História tem alma para a valorizar devidamente.
Fontes: Asas de Ferro Suplementos, Blog de Fernando Caldas e Tok de História.