O Café Magestic

Nas primeiras décadas do século XX, grupos de boêmios costumavam se reunir para beber e conversar no Café Magestic, situado da esquina da Rua Ulisses Caldas, 101, com a Rua Vigário Bartolomeu, 549. Antes, no local funcionava o Café Potiguarânia, em atividade desde o final do século XIX. O Potiguarânia possuía salão de bilhar, constituindo uma casa de propriedade do poeta, jornalista e dramaturgo Ezequiel Wanderley. Ainda no início do século XX, a casa comercial passou a pertencer a Benjamin Simonete, denominando-se Café Magestic.

Café Magestic. Fonte: PINTO, 1971, s/p.

Do café Potiguarânia ao Café Magestic

No ano de 1919, o proprietário Ezequiel Wanderley encerrou as atividades do café Potiguarânia. O literato vendeu o estabelecimento para Urbano Benjamim Simonete.

Simonete, por sua vez, transformou a Potiguarânia em Magestic. A fachada do café da família natalense deu lugar às cores vivas do nome Magestic. Não sabemos o que motivou a mudança do nome do café, contudo, o novo negócio não deu certo.

No ano seguinte, Magestic era café e bar, não mais bilhar, e transferiu-se das mãos de Simonete para a sociedade comercial composta pelo poeta Jorge Fernandes, o seresteiro Deolindo Lima, o músico Barôncio Guerra e os humoristas Aurélio Flávio e Pedro Lagreca (Cf. GUIMARÃES, 1999, p. 135.). No primeiro andar do estabelecimento, funcionava a Diocésia, onde aconteciam palestras literárias, espetáculos teatrais, recitações de poemas e contações de histórias e anedotas.

Tal espaço também servia como sala para receber indivíduos importantes da literatura brasileira (Mário de Andrade, Manuel Bandeira, entre outros). De Potiguarânia ao Magestic, é certo que o café continuava na direção de homens de letras da capital norte-rio-grandense. Característica que, a nosso ver, foi essencial às atividades que o café Magestic passou a abrigar.

Daí por diante o Magestic passou a ser exclusivamente café e bar, extinguindo as atividades de bilhares e jogos de outrora realizados no Potiguarânia. Houve outras modificações.

Modificações

O café passou a ocupar quase um quarteirão inteiro composto pela Ulisses Caldas, 21 de março e a Praça do Mercado. Na imagem abaixo podemos visualizar a Rua Vigário Bartolomeu e, no lado esquerdo, parte do café Magestic na esquina da rua:

A Rua Vigário Bartholomeu e o café Magestic. Fonte: Foto de Jayme Seixas. MIRANDA, João Maurício Fernandes de. 380 Anos de História Foto-Gráfica da cidade de Natal – 1599/1979, Editora Universitária, UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. p. 33.

A entrada no café Magestic passou a ser franca. Se o Potiguarânia funcionava das 9 horas até às 22 horas (A REPUBLICA, 3 set. 1900), os encontros no Magestic entravam pelas madrugadas alegres e estendiam-se até que seus frequentadores pudessem saudar o Sol. O café, constantemente, enchia sempre após às 19 horas (Wanderley, Jaime dos G. Op. Cit. p. 94.).

Boemia

As animadas noites no Magestic acompanhava o desenvolvimento da vida noturna da cidade do Natal. A cidade “mal iluminada” dos primeiros anos do século XX, no ano de 1919, já contava com a iluminação elétrica.

Segundo Raimundo Arrais, a organização e a ampliação da rede de distribuição de eletricidade por toda a cidade, além de promover a iluminação das ruas e das residências em Natal, possibilitaram o desenvolvimento de hábitos noturnos (ARRAIS, Raimundo. ANDRADE, Alenuska, MARINHO, Márcia. Op. cit, p. 107.). As pessoas passaram a frequentar cinemas, teatros e, sobretudo, os cafés.

A localização do Magestic, em frente ao Royal cinema, também proporcionou na “produção de um grande movimento à noite no café” (PINTO, Lauro. Op. Cit. p. 43.). O movimento descrito era tanto que até mesmo um português vendedor de sorvete, identificado como “Seu Silva”, obtinha lucro no negócio, estacionando a sua carrocinha durante anos na esquina do Magestic (Ibid, p. 44.).

Academia

O espaço transformou-se e, junto dele, suas práticas. Talvez o café Magestic represente o mais significativo espaço da sociabilidade na cidade do Natal. Os sistemas de jantares e competições de bilhares ocorridos no Potiguarânia converteram-se
na “verdadeira academia” (GUIMARÃES, João Amorim. Op. Cit. p. 156), no ambiente que abrigou as tertúlias literárias. De fins do ano de 1919 até o ano de 1935, o Magestic teve uma considerável influência na vida intelectual da cidade do Natal.

Podemos supor que o ambiente destinado ao serviço de café foi transformado em espaço pelos seus habitués. Os literatos da cidade do natal converteram o Magestic em um lugar praticado, de modo que as tertúlias literárias praticadas no interior daquele ambiente ressignificaram as atividades no mesmo.

Desse modo, foi no Magestic que poetas, cronistas, jornalistas fizeram das discussões literárias as suas horas de lazer. Os usos que os grupos de escritores fizeram no café foram definidores do próprio espaço, operando-o para transformação do Magestic em um espaço distinto. Portanto, de qualitativo de “café”, o Magestic passou a ser identificado como “uma Casa de Letras, um Ateneu da Grécia antiga”, designação atribuída por seus frequentadores (GUIMARÃES, João Amorim. Op. Cit., p. 154.).

João Amorim Guimarães, um dos habitués que frequentava o Magestic, lembra a dinâmica do local em dias de domingo ou em feriados:

O Magetsic regurgitava de gente, num movimento ensurdecedor a DIOCÉSIA (a ‘RODA LITERÁRIA’) esgueirava-se pela escada acima e ia alojar-se no sótão e lá ficava, na alegria das palestras literárias ou contando histórias humorísticas (Ibid, p. 155.).

Diocésia

O nome “diocésia” faz alusão a um espaço de jurisdição dos literatos. A denominação foi propositalmente grafada de maneira incorreta já que a maneira correta seria “diocese”. A nomenclatura “diocésia” remete a um episódio em que um dos frequentadores do café, José Laurindo, embriagado, bancou o valente e esbravejou: “- Aqui, nesta diocésia, que manda sou eu”815. Nas palavras do escritor Amorim Guimarães, a denominação agradou a Jorge Fernandes que, dali em diante, o recinto festivo do Magestic estava devidamente batizado: seria “diocésia”.

No salão da Diocésia, os adeptos ao modernismo declamavam poemas. O estilo e as ideias modernistas chegaram a Natal por intermédio de intelectuais recém-chegados de viagens a São Paulo e Europa (Cf. FERNANDES, 2008, p. 9-17.). Na Diocésia, encontravam-se nomes de nossa literatura (Luís da Câmara Cascudo, Henrique Castriciano, Othoniel Menezes, Jorge Fernandes, Ezequiel Wanderley e Carlos Siqueira), e também grandes humoristas (Pedro Lagreca e Francisco Pignataro), além de outros homens sem muita habilidade para as letras e para o humor.

Henrique Castriciano, que vez por outra aparecia no Café Magestic, afirmara que, diferentemente do que acontecia há algumas décadas, muitos intelectuais que contribuíam com os principais jornais da cidade tinham formação acadêmica, ou seja, estudaram Direito em Recife ou Medicina em Salvador. Eram homens que ―viajaram, sentiram a impressão física e moral de outros centros (CASTRICIANO, 2011, p. 204-205).

As reuniões na Diocésia eram verdadeiras aulas àqueles que desejassem aprender a respeito de diversos assuntos literários. Diariamente, o Café Magestic reunia artistas e boêmios que organizavam as tertúlias lítero-musicais. Segundo Jaime Wanderley, no
estabelecimento:

Faziam-se discursos, declamavam-se poemas, cantavam-se modinhas, tocavam-se melodias, últimos sucessos sonoros, improvisavam-se charges e sátiras e, às vezes, também sinapizava-se a pele e a vida alheia, embora não fosse muito usada essa ultima faceta computada nas reuniões (WANDERLEY, 1984, p. 99.).

Na Diocésia, só entrava a elite intelectual que frequentava o café. O espaço era um ambiente seleto àqueles intelectuais e artistas que vivenciavam quase diariamente o Bar Magestic. As sessões eram presididas por Jorge Fernandes, identificado nos textos memorialísticos como presidente perpétuo do recinto literário. Os homens comuns do povo não tinham acesso às tertúlias. Diferente do que acontecia em O Ôco e nos botecos do Passo da Pátria, onde as reuniões dos boêmios podiam ser observadas pelo vulgo, a presença de populares era proibida nas tertúlias da Diocésia.

Primeira fase: diocese

A partir do fragmento acima, podemos identificar a existência de uma divisão na estrutura física do Magestic. As reuniões nos recintos internos do café eram distinguidas por fases. A primeira fase das reuniões ocorria no quintal do café ao abrigo de uma planta da espécie ficus benjaminia. Acreditamos que esse tipo de árvore era bastante comum na flora da cidade do Natal. A árvore é mencionada na arborização da Praça Pedro Velho, no bairro da Cidade Nova, durante a reforma e do ajardinamento da mencionada praça. Uma notícia publicada no jornal A Republica, no ano de 1917, ressalta a contribuição desse tipo de árvores no embelezamento da cidade.

Ainda no quintal do café estavam distribuídas mesas e cadeiras sob o clarão de lâmpadas com centenas de velas (WANDERLEY, Jaime dos G. Op. Cit. p. 98.). Acreditamos que esse tipo de iluminação era específico do estabelecimento, uma vez que a cidade do Natal já dispunha nesse período de iluminação elétrica. Esse local era tido como sala de visitas do café. Ali, os escritores aguardavam para serem conduzidos ao sótão por Segundo, “um garçom natural do sertão, porém há bastante tempo familiarizado com a praça” (Ibid, p. 99.).

Segunda fase: sótão

O sótão do café correspondia à segunda fase das reuniões. No sótão, um grupo de escritores reuniu-se frequentemente nos dias de sábado, domingo e feriados. Acreditamos que o café dispunha de um terceiro local, não utilizado pelos homens de letras do Magestic, mas por outros indivíduos que faziam uso comum do estabelecimento e não tinham acesso aos serões literários. Como podemos perceber, a sociabilidade descrita aqui corresponde às reuniões de um grupo específico.

O grupo era integrado por Luís da Câmara Cascudo, Jorge Fernandes, Othoniel Menezes, Ezequiel Wanderley, Lucas Wanderley, Evaristo Souza, Edinor Avelino, Oliveira Júnior, Bezerra Júnior, Jaime Wanderley, Abelardo Bezerra, José Wanderley, Barôncio Guerra, Pedro Oscar, Renato Wanderley, João Apolinário Barbosa, Abel Furtado, Deolindo Lima, Sandoval Wanderley, Francisco Bulhões, José Tabira, Carlos Siqueira, Francisco Leraistre, Teodorico Guilherme, Pedro Lagreca, Aurélio Flávio, Carmelo Pignataro, Francisco Pignataro, João Gomes da Câmara, Luís Maranhão, Joca Lira, Waldomiro Moreira Dias, Odorico Moreira Dias, José Barbosa, Platão Wanderley, Apolônio Seabra, Eurico Seabra, Francisco Dantas, Moysés Soares, Octacílio Alecrim, Augusto Coelho, João Amorim Guimarães, Manoel Seabra, Elissósio Guimarães, Absalão Simonete, Rodolfo Maranhão, Estevam Antunes, Augusto Coelho, José Gomes, Antônio Fontes, João Galvão, Pio Barreto, Francisco Madureira, José Laurindo, José Barbosa, Jorge Dantas, Capitão Lustrosa (GUIMARÃES, João Amorim. Op. Cit. p. 156-157.)

Os nomes listados aqui não são exclusivamente de literatos, a freguesia que participava dos momentos literários no café também era constituída por professores e jornalistas, que não atuavam nas letras. Essa heterogeneidade no que diz respeito aos homens
que frequentavam o Magestic provoca-nos uma reflexão acerca do alcance amplo desses serões literários, do qual participavam não apenas literatos, mas outros indivíduos que, embora não desenvolvessem a atividade escrita, nutriam gosto pela literatura.

Diante desse leque de nomes, seria um equívoco se afirmássemos que no café Magestic estavam reunidos todos os homens de letras da cidade do Natal. O Magestic tornouse ambiente que definiu e formou a identidade de um grupo específico: o grupo de Jorge Fernandes, de Luís da Câmara Cascudo.

Câmara Cascudo

[…] o Bar Majestique, antes chamado de Potiguarânia, o grande bar da minha geração, situado na Rua Ulisses Caldas, e frequentado por jornalistas, professores, literatos. Também frequentamos o Bar Delícia, na Praça Augusto Severo. Estes eram os dois pontos mais frequentados em Natal, na época. A minha geração toda passou por lá: Othoniel Menezes, Jorge Fernandes etc.; era o bar — o Majestique — da bebida, da classe média, da intelectualidade (CASCUDO, 2002, p. 42).

Ao revelar sua preferência, Cascudo definiu, na citação acima, o grupo de clientes do Café Magestic: literatos, professores e jornalistas, que formavam uma geração de intelectuais e boêmios, fregueses do Bar Magestic, um lugar de intensas relações entre os presentes. Estava estabelecida uma afinidade entre os indivíduos, que se reconheciam enquanto grupo, e pertencentes a esse espaço da boemia natalense.

Nos anos de 1920 e 30, existia o Café Grande Ponto, na esquina da Avenida Rio Branco com a Rua João Pessoa, estabelecimento bastante frequentado pelos natalenses. Tratava-se de uma mercearia, propriedade de Custódio de Almeida, que possuía um serviço de bar e duas mesas de bilhar. Cascudo afirmava que seu grupo de boemia raramente comparecia ao Grande Ponto, preferindo o Café Magestic. Para o escritor, o Grande Ponto era um lugar de passagem. Ele raramente comparecia ao lugar, e quando isso ocorria, sentava em uma mesa para beber, enquanto assistia a um jogo de bilhar. Em 1949, Djalma Maranhão reclamava que Cascudo não costumava aparecer na esquina da Avenida Tavares de Lira com a Rua Doutor Barata, onde se situavam a Confeitaria Avenida, o Clube e Bar Carneirinho de Ouro e outros lugares da boemia natalense, dava preferência a sua própria roda de amigos e suas tertúlias (Cf. MARANHÃO, 2004, p. 56-57). Em meados do século XX, Cascudo era freguês da Confeitaria Delícia, na Praça Augusto Severo, no bairro da Ribeira.

Em trechos de uma crônica de autoria de Luís da Câmara Cascudo, identificamos o Magestic como “o bar da bebida, da classe média, da intelectualidade” ( CASCUDO, Luís da Câmara. O Grande Ponto. In: GARCIA, Eduardo Alexandre de Amorim (org.). Cantões, cocada, grande ponto – Djalma Maranhão. Natal/RN: Galeria do Povo, 2002. p. 26-27.). Na crônica “O Grande Ponto”, Luís da Câmara Cascudo contrapõe o Grande Ponto – localizado na esquina da Av. Rio Branco com a Rua Pedro Soares – com o café Magestic. O cronista potiguar, frequentador da “academia de letras da Rua Ulisses Caldas” nas décadas de 1920 e 1930, ressaltou que o Grande Ponto:

não era o lugar frequentado por meu grupo, que, nessa época, preferia o bar Majestique, antes chamado de Potiguarânia, o grande bar da minha geração, situado na rua Ulisses Caldas, e frequentado por jornalista, professores literatos.(…) A minha geração toda passou por lá: Othoniel Meneses, Jorge Fernandes, etc.;era o bar – o Majestique – de bebida, da classe média, da
intelectualidade. O Grande Ponto, ao contrário, era um lugar de passagem, uma fixação puramente topográfica (Ibid, p. 26.).

No relato de Luís da Câmara Cascudo percebemos que o Magestic passou a ser identificado, valorosamente, por um determinado grupo de escritores da cidade de Natal. O cronista menciona ser o bar um ambiente frequentado por sua geração. A geração de Cascudo e as atividades que se davam no interior do Magestic produziram sentidos ao café.

Podemos identificar essas atribuições de valores nas palavras pronunciadas por Câmara Cascudo. Enquanto que, para o grupo de Luís da Câmara Cascudo, o Grande Ponto correspondeu a uma “fixação puramente topográfica”, o Magestic foi muito mais significativo. As atividades sociais desenvolvidas no café conferem-lhe um significado. Portanto, se o Grande Ponto é o não lugar, onde não há enraizamento, o Magestic é fixidez, inércia, lugar.

Dentro da cidade do Natal, o grupo de Jorge Fernandes e de Cascudo dotou o café Magestic de um sentido único e inteligível para esse grupo, atribuindo-lhe o sentido de “academia literária”. As feições e as experiências humanas desenvolvidas pelos frequentadores do café Masgetic produziram uma relação de identidade entre o grupo e o estabelecimento. Assim, as interações que ocorriam no Magestic possibilitaram a constituição de uma rede, de um grupo, de uma unidade e a fortificação desses laços.

Música

No Café Magestic encontravam-se muitos músicos e intérpretes que cantavam canções e tocavam melodias, produzindo um ambiente de festa e descontração. Nessas reuniões, as serenatas eram organizadas quase todas as noites:

Sempre, a meia-noite era organizada uma serenata, que percorria as ruas da capital, quer fizesse luar ou fosse noite escura. Eram violões, flautas, violinos, oboé, bandolins, que compunham a orquestra, encarregada de acompanhar os cantores, Aristóteles Costa, Aurélio Flávio, Carvalho Cruz, portadores de sugestivos repertórios e de maviosa voz, que fazia despertar ―frission‖, nas morenas apaixonadas do bairro (WANDERLEY, 1984, p. 94.).

As reuniões boemias que aconteciam nos bares de Natal, como exemplo as do Café Magestic, inúmeras vezes resultavam em serenatas. Essas atuações nem sempre agradavam as famílias natalenses, pois eram realizadas na madrugada, à janela da casa de alguma senhorita ou de amigos, incomodando o sono da vizinhança. Muitos literatos e músicos eram indivíduos socialmente respeitados, diferenciando-se das pessoas comuns devido a sua particularidade intelectual. Eles costumavam se reunir no Café Magestic para as tertúlias literárias. No entanto, quando praticavam atitudes que fugiam às regras da ―boa sociedade‖, a exemplo da frequência às serenatas, os boêmios eram recriminados pelas famílias natalenses.

As serenatas, o salão de Isabel Gondim, a Livraria Cosmopolita, o NatalClub, o Potiguarânia e o café Magestic eram frequentados por grupos, o que marca a heterogeneidade entre os intelectuais da cidade do Natal. Se há uma divisão de grupos, há segregação, há ideias diferentes, há estéticas díspares, há projetos e propostas distintas – e, talvez, quem sabe, opostos.

Em outras palavras, por intermédio das dinâmicas observadas nas serenatas, no salão de dona Isabel Gondim, na Livraria Cosmopolita, no Natal-Club, no Potiguarânia e no café Magestic, identificamos várias facetas das vivências da literatura natalense.
Sendo assim, os ambientes de sociabilidade intelectual na cidade do Natal constituíram um caráter seletivo.

Nesses espaços, os homens de letras conservaram laços entre grupos e tornou o universo intelectual natalense multifacetado. Portanto, as serenatas, o salão, a Cosmopolita, o Natal-Club, as conferências, o Potiguarânia e o Magestic apresentam-se como estruturas organizacionais da cidade do Natal que possuem como ponto nodal o fato de constituírem-se como local de aprendizado, de debates e de trocas intelectuais, indicando a dinâmica do movimento de fermentação e circulação de ideias, opiniões e diálogos na cidade do Natal.

Seleção

O salão do térreo, onde funcionava o café, era aberto ao público, porém os próprios frequentadores assíduos da casa comercial selecionavam quem participaria das conversas e aqueles que ficariam de fora, de modo que o indivíduo excluído, não se sentindo a vontade no ambiente, fosse embora e não voltasse mais:

Entrava o freguês, fazia o pedido, era atendido cortesmente, sem ser incomodado; mas, se procurava conversar, se dava algum ―aparte à conversa, ou se dirigisse a qualquer dos presentes, seria atendido, apenas, por monossílabos, por ―sins ou por ―nãos.

Aquele, já sabia que não voltava mais.

Campo era uma defesa social horrível. Traduzia-se pela retirada estratégica de todos, um por um, até ficar sozinho o freguês inconveniente. Depois iam voltando todos, aos poucos, e formando novas ―rodas, arredadas do intruso (GUIMARÃES, 1999, p. 153.)

Ainda que o acesso ao café Magestic fosse gratuito, era dentro do ambiente que se realizada a seleção. A seleção se dava mediante a exclusão daqueles que não faziam parte do grupo de escritores. João Amorim Guimarães descreve duas práticas exclusão realizadas no café:

Se o freguês não convinha, pelas suas más qualidades, pela sua vida irregular, incompatível com o meio, teria logo a ‘geladeira’. A ‘geladeira’ foi a maior arma de defesa à parte moral e social do Magestic.

Entrava o freguês, fazia o seu pedido, era atendido cortesmente, sem ser incomodado; mas, se procurava conversar, se dava alguma “aparte” à conversa, ou se dirigisse a qualquer dos presentes, seria atendido, apenas por monossílabos, por ‘sins’ ou por ‘nãos’. Aquele, já se sabia que não voltaria mais.

Quando aparecia algum ‘valente’, dava-se ‘campo’ nele. ‘Campo’ era outra defesa social horrível. Traduzia-se pela retirada estratégica de todos, um por um, até ficar sozinho o freguês incoveniente. Depois iam voltando todos, aos poucos, e formando novas “rodas”, arredadas do intruso.(…) O ambiente do Magestic já estava feito. Seria impossível desorganizá-lo (GUIMARÃES, João Amorim. Op. Cit. p. 153-154.)

O trecho é longo, mas merece a nossa atenção. Podemos identificar nele, a dupla dimensão do café Magestic: um ambiente que aglutina e um ambiente que seleciona. A articulação que o cronista faz entre “freguês inconveniente” e suas “condutas, vida irregular” nos leva a supor que a distinção, ao menos nesse espaço de sociabilidade, estava longe de significar uma diferenciação entre situações financeiras. Outro ponto que é importante enfatizarmos diz respeito à identificação que o grupo de Jorge Fernandes, Câmara Cascudo, Barrôncio Guerra, entre outros, projetam no recinto, ao ponto de unirem-se contra um “indivíduo” estranho. Desse modo, podemos identificar o Magestic como ambiente afetivo, em que se desenvolveram sensibilidades ligadas a proteções do espaço, de vetá-lo aos indesejados.

Hierarquia

É curioso ainda como dentro desse grupo podemos identificar hierarquizações entre aqueles que eram aprendizes e os que eram mestres. O Magestic reuniu em um único grupo os “mestres da nossa literatura e da nossa poesia” (Ibid, p. 157.) e “homens de pouco recursos nas letras” (Idem.)

O café, portanto, pode ser identificado como espaço de ensinamentos, de aprendizado para as letras em que “os ‘novos’ iriam ali encontrar os ‘mestres’ solícitos, que os guiariam com satisfação e com amizade pelos caminhos dificeis e misteriosos da Literatura e da Arte” (Ibid, p. 184).

Os “homens de pouco recurso nas letras” encontraram no recinto a oportunidade de aprender com os ensinamentos de escritores como Câmara Cascudo, Othoniel Menezes e Jorge Fernandes. Às vezes, as tertúlias literárias também contavam com a presença de
Henrique Castriciano, compondo o quadro de “mestres”. O aprendizado no Magestic não se restringiu apenas aos escritores da terra. Pelo menos, em duas vezes, os “ensinamentos” vieram da cidade do Rio de Janeiro por meio das palavras e das produções dos literatos Manuel Bandeira e Mário de Andrade em visita aos “recintos da diocésia”.

Conversa

No ambiente do Magestic, imperou intensamente a modalidade básica da sociabilidade: a conversa. O café é lugar onde florescem discursos (SENNET, Richard. Op. Cit. p. 108.). Portanto, por meio dos diálogos estabelecidos eram mantidos os vínculos sociais (FRÚGOLI JR., Heitor. Op. Cit., p. 10.). Aqui apresentamos, novamente, uma valorização das palavras.

O café abrigou ainda atividades lúdicas, em que seus notáveis habitués divertiram-se jogando dominó e dados. No entanto, se no Magestic foram produzidas trocas sociais, o café também proporcionou trocas intelectuais.

Nas palavras de Amorim Guimarães, o Magestic “inspirava. Aquele ambiente festivo dava vida e vibração à inteligência, agitava a alma e obrigava o espírito a produzir” (GUIMARÃES, João Amorim. Op. Cit. p. 183).

Podemos aferir que não há meio intelectual sem a existência de um espaço de debates. No sótão do Magestic ou no abrigo do fícus-benjamina, os frequentadores do café que almejavam lançarem-se nas atividades literárias no Rio Grande do Norte discursavam, debatiam, conversavam sobre suas produções.

Contribuições intelectuais

A história do café nos leva a pensar sobre as condições sociais da produção intelectual na cidade do Natal das três primeiras décadas do século XX, período de funcionamento do Magestic. Foi frequentando o café que Luís da Câmara Cascudo escreveu a sua primeira obra – Joio, que Jorge Fernandes compôs em 1927 seu Livro de Poemas, que Jaime Wanderley escreveu Boneca de Chocolate, que Othoniel Menezes deu origem à Jardim Tropical, que Renato Caldas compôs Fulô do Mato e Ezequiel Wanderley, a obra Balões de Ensaio. Foi ainda, frequentando as calorosas noites literárias do café que Barôncio Guerra foi cursar Direito no Recife, que Reis Lisboa deu início à carreira de jornalista, que Edinor Avelino e Bezerra Júnior ensaiaram-se seus poesia, que Damasceno Bezerra revelou-se poeta. O Magestic promoveu o conhecimento das peças compostas por José Wanderley; apresentou a literatura a Renato Wanderley; fez conhecer os poetas Adriel Lopes, Elissósio Guimarães, Oliveira Júnior, João Estevam (Ibid, p. 183-184.).

Nesse mesmo ambiente, Mário de Andrade encorajou Jorge Fernandes quanto à produção do livro Jardim Tropical. Mário de Andrade visitou a cidade do Natal no ano de 1928, chegando em 14 de dezembro desse ano. O escritor paulista de Macunaíma teve um encontro com Jorge Fernandes no café Magestic, mediado por Luís da Câmara Cascudo. Em seus relatos, Mário de Andrade registra o elogio que direcionou ao poema e a sua obra Jardim Tropical. Os elogios de Andrade soaram como prece de ânimo para Jorge Fernandes, uma vez que o paulista descreve a feição do poeta potiguar como desanimadora, ao comentar acerca da obra publicada naquele ano. Para mais informações sobre a visita de Mário de Andrade em Natal, consultar: ANDRADE, Mário. O turista aprendiz. São Paulo: Editora Itatiaia, 2002. p. 82.

O café também contou com a visita de outros intelectuais, entre eles Manoel Bandeira (GUIMARÃES, João Amorim. Op. Cit. p.186.).

E quando não havia debates sobre as últimas e as futuras obras literárias, o Magestic também representou distração para os pensamentos fervilhantes da intelectualidade natalense. Foi ali que Henrique Castriciano ia arejar sua inspiração fecunda para transformála, depois em poemas de ouro e jaspe. Era ali que Luís da Câmara Cascudo encontrava guarida à sua inspiração e ‘fazia’ coragem para escrever novos e magníficos livros (GUIMARÃES, João Amorim. Op. Cit. p. 184.).

Por conseguinte, o café Magestic foi, por excelência, um espaço de condição para a elaboração intelectual.

Muitos desses intelectuais viviam na fronteira do que seria a ―boa sociedade natalense e a boemia. Eles exerciam atividades de funcionários públicos e jornalistas e frequentavam um ambiente seleto, reservado para si e seus iguais, como era o caso do Café Magestic. No entanto, o ato de vagar pela noite, em busca de bares abertos e de serenatas, permitia a aproximação do boêmio com a vadiagem.

Francisco Pignataro tinha ocupação fixa, exerceu o cargo de Pagador das Obras Contra as Secas e, posteriormente, de Tesoureiro da Recebedoria de Rendas do Estado. Frequentou, nas primeiras décadas do século XX, o Café Magestic, reduto boêmio de intelectuais, a exemplo de Luís da Câmara Cascudo e Jorge Fernandes, situado na Rua Ulisses Caldas, no bairro de Cidade Alta. Na década de 1950, Pignataro atravessava o rio Potengi para passar fins de semana e feriados na Praia da Redinha.

Eram nas redações, nas tipografias dos jornais natalenses, no salão de dona Isabel Gondim, nas conferências e horas literárias realizadas no Natal-Club, nas serenatas cantadas pelas ruas em noites embelezadas pela lua, nas visitas rotineiras à livraria Cosmopolita e nos encontros – regados a bebidas espirituosas – no interior do bilhar Potiguarânia e do Café Magestic que os letrados da capital potiguar reuniram-se, conversaram, debateram, compartilharam, fermentaram suas atividades no universo literário potiguar.

A frequência e a convivência no café Magestic afirmaram a nossa hipótese no que diz respeito à existência de uma organização seleta em alguns espaços destinados à sociabilidade da sociedade potiguar. Se por um lado, o café é referenciado como espaço de sociabilidade dos homens de letras da cidade do Natal, por outro, constitui-se em espaço que exclui.

Crepúsculo

Hoje, o Café Majestic fechou na década de 40 e 50, uma vez que esta cidade passou por fortes mudanças devido à chegada dos americanos no RN.

O outrora Potiguarânia, o famoso café localizado na esquina das ruas Vigário Bartolomeu e Ulisses Caldas que posteriormente passou a se denominar Café Magestic teve seu prédio demolido: é atualmente um estacionamento da Prefeitura de Natal.

Em 07/05/2019 a reportagem da Tribuna do Norte intitulada “Arcos do velho mercado ressurgem em reforma no Centro” mostrou que uma reforma em uma antiga casa na rua Vigário Bartolomeu, vizinho ao Shopping Popular da Cidade Alta, quase na esquina com a avenida Ulisses Caldas, chamou atenção por revelar traços arquitetônicos de uma área na cidade famosa por abrigar no início do século passado os lendários Royal Cinema e Café Majestic.

A casa, por sinal, fica exatamente vizinho onde antes existia o Café Majestic, bar de toda uma geração de intelectuais de Natal (Othoniel Meneses, Sandoval Wanderley, Câmara Cascudo e Jorge Fernandes), mas que hoje serve como um pequeno estacionamento de esquina, ocupado por carros e sobrevoado por dezenas de pombos, sem nenhum vestígio do antigo prédio.

O prédio da rua Vigário Bartolomeu, antes do início da reforma.
Local serve como depósito de comerciantes do mercado.
Depois da reforma. Imagens do Google Maps de 2019.

A imagem mostra que na reforma foi feita uma raspagem no concreto da fachada, revelando os tijolinhos da estrutura e fazendo aparecer os arcos das portas. A reforma está sendo tocada de forma autônoma e singela por feirantes do Shopping Popular. A iniciativa visa somente reforçar a estrutura do prédio para que o espaço volte a servir de depósito. Pelo apurado no local, não há qualquer placa de autorização da Secretaria de Meio Ambiente e Urbanismo (Semurb) ou do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no RN (Iphan-RN).

Consultado pela reportagem, um arquiteto especializado em restauração comentou que a casa é provavelmente parte do antigo casario da quadra do velho Mercado Público da Cidade Alta (destruído por um incêndio na década de 1960). “Inclusive estão descaracterizando a fachada com a retirada da cornija e cimalha da platibanda e alterando as portas”, alertou o arquiteto, que preferiu não se identificar.

Sítio Histórico

O conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico da cidade de Natal, que engloba a Cidade Alta e a Ribeira, foi tombado pelo Iphan, em 2010. A área se destaca pelo conjunto de importância histórica e paisagística do rio Potengi, para a cidade. O conjunto, emoldurado pelo rio, compõe uma paisagem muito importante para a memória potiguar, onde estão instalados a maioria dos espaços culturais. O patrimônio tombado é formado por cerca de 30 bens materiais, incluindo edificações de destaque do período colonial (em sua maioria) e um acervo de obras de arte sacra.

Café Magestic teve seu prédio demolido: é atualmente um estacionamento da Prefeitura de Natal. Imagem do Google Maps de 2021.

Fontes:

Arcos do velho mercado ressurgem em reforma no Centro – tribuna do Norte – http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/arcos-do-velho-mercado-ressurgem-em-reforma-no-centro/447239 – Acesso: 07/05/2019

Cantos de bar: sociabilidades e boemia na cidade de Natal (1946-1960). /Viltany Oliveira Freitas. – 2013.

O nosso maestro: bibliografia de Waldemar de Almeida. Claudio Galvão. Natal: Edufrn, 2019.

Fontes primárias:

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CASCUDO, Luís da Câmara. Grande Ponto. In: GARCIA, Eduardo Alexandre. Cantões, cocadas: grande ponto Djalma Maranhão. Natal: Natal gráfica, 2002, p. 42-45.

CASTRICIANO, Henrique. Aspectos Natalenses (Sem nome e data do jornal). In: ALBUQUERQUE, José Geraldo de. Seleta: Textos e Poesias. Natal: Sebo Vermelho, 2011.

FERNANDES, Jorge. Livro de poemas de Jorge Fernandes. Introdução e organização de Maria Lúcia de Amorim Garcia. 5. ed. Natal: EDUFRN, 2008.

FRÚGOLI JR., Heitor. Sociabilidade Urbana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

GUIMARÃES, João Amorim. Natal do meu tempo: crônica da cidade do Natal. Natal: Departamento de Imprensa, 1952 (Organização, introdução e notas de Humberto Hermenegildo de Araújo, 1999).

MARANHÃO, Djalma. Esquina da Tavares de Lira com a Dr. Barata, centro convergente e irradiador da vida natalense. Notas de Cláudio Galvão. In: Diário de Natal (1949), Natal, 2004.

NEEDLE, Jeffrey D. Belle Époque tropical: sociedade e cultura no Rio de Janeiro na virada do século. Rio de Janeiro: Companhia das letras, 1993

PINTO, Lauro. A Natal que eu vi. Natal: Imprensa universitária, 1971.

WANDERLEY, Jaime dos Guimarães. É Tempo de Recordar. Natal: CERN/ Fundação José Augusto, 1984.

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