Natal, uma cidade de papel (1904 -1929)

Era no tempo em que os vereadores de Natal iam a pé para o trabalho na câmara, não recebiam salário nem prebendas e a palavra
jeton não entrara ainda no vocabulário dos edis nem no orçamento municipal. Vereadores se chamavam intendentes e o conjunto deles
formava o conselho da intendência da cidade de Natal, presidido por um de seus membros. A sede da intendência não era própria,
mas alugada: somente em 1922, por ocasião das comemorações do centenário da Independência, foi inaugurado o edifício do Palácio
Felipe Camarão, que acolhe a câmara municipal e que continua de pé, ali na rua Ulisses Caldas.

Se pensarmos na complexidade dos processos e dos atos que estão na origem da existência de uma cidade, é inegável a relevância de
se estudar a ação do conselho da intendência da cidade de Natal. Porque o ato de governar a cidade compreende um grande leque
de atribuições, como demarcar as fronteiras dos bairros, estabelecer as obrigações dos cidadãos, incluindo as obrigações tributárias,
formular certas regras que deviam ordenar o uso do espaço público, recolher o imposto devido pelas profissões – um conjunto largo de
atribuições que acaba conferindo ao poder municipal instituído uma posição singular na história da cidade, pois todas essas ações colaboram para que a cidade possa existir como entidade organizada, para que os moradores possam se ver na sua dimensão coletiva, a cidade, gerida por um poder municipal. Assim, a intendência concorre para o estabelecimento dessa identidade espacial e humana, a cidade, e no caso específico estudado neste livro, a cidade de Natal.


De fato, o conselho da intendência é um dos agentes produtores da cidade: um pequeno conjunto de cidadãos, legalmente eleitos,
portadores de mandatos temporários, que se reuniam sob o teto do conselho da intendência municipal, que atua elaborando leis,
as chamadas “resoluções”, e procuram fazer com que elas sejam cumpridas.

Nesta época por um lado havia o desejo, o sonho, a utopia; por outro, o medo, a repulsa, a recusa. E essas duas ordens de sentimentos atravessando a cidade e agitando-a devem ser compreendidas na situação específica do começo do século XX.

Na primeira ordem, o desejo, o sonho, a utopia. A cidade dos intendentes e das classes altas deveria ser a realização do desejo de plantar algum dia dentro do solo republicano uma cidade ordenada, um urbanismo limpo.

A segunda ordem, o medo, a repulsa e a recusa, ajudava a desenhar outra cidade, o espectro ameaçador para os intendentes e as classes
altas, e esse espectro aparece num par de conceitos opostos que eles invocavam. Explicita-se que está em curso o esforço para implantar na cidade de Natal um conjunto de valores que exprime uma maneira de ser urbano, conforme um ideal civilizatório que corria mundo na época, francamente opostos à vida rural, à roça, ao sertão.

Por Raimundo Arrais – Professor do Departamento de História / Programa de Pós-graduação em História (UFRN).

Legenda: Trecho da Rua “Ulysses Caldas” e o palacete da Intendência Municipal, em Natal.

Natal, outra cidade! [recurso eletrônico] : o papel da Intendência Municipal no desenvolvimento de uma nova ordem urbana na cidade
de Natal (1904-1929) / Renato Marinho Brandão Santos. – Natal, RN : EDUFRN, 2018.

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