O preço da Natal “chic”

As obras de melhoramentos ou modenização de Natal no início do século XX foram alvos de diversas críticas pelos jornais oposicionistas ao governos da oligarquia Maranhão. Desvio de recursos, derrubada de casarões e falta de transparência na tomada das decisões estão entre as críticas.

Festividades escolares na praça Augusto Severo em 1912. A alusão ao mártir da aviação nos eventos civis realizados na praça era constante. No estandarte do desfile pode se ver “PAX”, o dirigível pilotado por Augusto Severo. O sobrado que aparece em segundo plano é a indústria de tecidos de Juvino Barreto. Fonte: CD Natal 400 anos.

Cidade Nova

A construção da Cidade Nova em Natal pode ser vista como o reflexo de atitudes e pensamentos elitistas, sobre como deveria fluir a vida urbana numa cidade moderna. A Cidade Nova representava então um ousado plano de adicionar à cidade de Natal um espaço completamente novo, um novo bairro planejado, obedecendo alguns padrões de modernidade e salubridades vigentes na época, como a abertura das largas avenidas, e arborização das ruas.

A ocupação da Cidade Nova, no entanto, esbarrou em alguns entraves. A presença de barracões nos terrenos projetados para o novo bairro gerou alguns conflitos entre os antigos moradores e o governo.

Numa nota sobre os planos de ajardinamento da praça Pedro Velho, na Cidade Nova, o jornalista mencionou que além do ajardinamento o governo havia mandado “também retirar uns tres ou quatro casebres que, não sabemos por que motivo ainda afeiam o centro daquela praça”. A nota nos faz crer que por mais arbitraria que tenha sido a decisão do governo de expropriar os antigos moradores houve resistência. A REPUBLICA, Natal. 18 jun. 1903.

Diário de Natal

As ações do governo não passavam despercebidas pela oposição, que apesar de pequena e impotente estava sempre apontando irregularidades e expondo suas críticas. Esta oposição era chefiada por Elias Souto, monarquista e dono do jornal opositor do governo Albuquerque Maranhão: O Diário do Natal.

Era justamente através do Diário do Natal que se exteriorizavam as críticas mais ferrenhas ao governo do Estado. Entre as principais imputações feitas a Pedro Velho e seus apadrinhados estavam as acusações de nepotismo, tanto em relação a contratação dos funcionários quanto na contratação das empresas prestadoras de serviços ao Estado.

Seca

Exemplo disso está na nota do Diário do Natal de 1904, ao comentar que os recursos federais de combate à seca estavam sendo desviados pelo governo para a execução de obras públicas na capital. Para o redator do Diário do Natal, “as obras públicas do estado foram feitas com o mesmo dinheiro, não se empregando nellas nenhum dos flagellados pela fome, mas somente pessoas apariguadas ao governo”. SECCA do norte. Diário do Natal, Natal, 13 set. 1904.

Em 1904, com a continuidade da seca que se prolongava desde 1902, uma grande multidão de retirantes se concentrou em Natal, fugindo da paupérie que assolava o interior, de plantações e rebanhos dizimados, da morte pela fome, procurando as mínimas condições de trabalho que fossem na capital, onde os recursos cada vez mais se concentravam, com as obras de melhoramentos do porto, de abertura e alargamento de ruas, de “aformoseamento” do espaço urbano. Em telegrama ao então presidente da República Rodrigues Alves, o governador Tavares de Lyra – que seria ministro de Viação e Obras Públicas no final da década de 1910, ao qual a IOCS estava subordinada – descreve a situação calamitosa em que se encontrava o estado:

“Pelas estradas, misturadas aos bandos de famintos, notam-se já famílias de antiga representação social, que dispunham de relativa fortuna, aniquiladas pela seca. São inúmeros os furtos pelos campos, sendo já numerosos os assaltos a casas de comércio e residências. Não resta mais nenhuma esperança de inverno. […]. Espetáculo da nudez e fome, mesmo na capital, urgentíssimo. Nesta cidade, alem do pessoal aproveitado nos trabalhos da estrada do Ceará-Mirim e de milhares que aguardam passagem, […], vagam pelas ruas outros milhares de indigentes sem abrigo nem pão, esmolando da caridade dos habitantes. […]. Começam a aparecer casos de disenteria e varíola”.

“Nos três últimos meses emigraram 6.564 famintos, só pelo porto desta capital; e muitos milhares esmolando pelas ruas, aguardam o ensejo de embarcar, descrentes de qualquer socorro. Aqui, como no interior, repetem-se diariamente inúmeros óbitos por inanição. Queira vossa excelência [o Presidente da República Rodrigues Alves] caridosamente atender a súplica de um estado inteiro, vitimado por uma calamidade que abateu todas as suas energias, reduzindo assustadoramente sua população pela expatriação e pela fome e aniquilando todas as suas forças produtoras. ” (Mensagem de Governo do RN – gov. Augusto Tavares de Lyra, 1904, p. 12-13, 18).

Calcula-se que estavam em Natal, neste ano, um número superior a 15 mil retirantes, em um período cuja população fixa era pouco mais de 20 mil habitantes (há o registro de uma população de 16.056 hab., em 1899, e 23.121, em 1907). Tal fato, segundo o relatório do inspetor de higiene, agravou ainda mais a débil situação sanitária da cidade: “sem o serviço regular de limpeza pública, sem esgotos, sem calçamento, sem arborização adequada, com a edificação mal orientada e defeituosa, servida por quintais construídos de faxina e latrinas à superfície do solo, a nossa capital será constante presa dos assaltos morbígenos de origens diferentes.”

A Praça Augusto Severo tinha recebido, durante a grande seca do início do século XX, mais de 15 mil de retirantes, em uma época que a população de Natal não ultrapassava 12 mil “almas”. Os “barracões” montados na praça haviam deixado lembranças no mínimo aterradoras: saques, epidemias, mortes, violências, deportações, desespero e fome. Os retirantes chegam mesmo a tentar invadir a casa do governador Tavares de Lyra em um episódio que ficou registrado pelas lentes do fotógrafo Bruno Bougard.

Das sacadas e das calçadas os observadores se distinguem dos revoltosos. Nesse momento, nas margens da rua, o poder “civilizador” militar, representado pelo soldado isolado e distante, parece impotente ante esse fenômeno. Na rua, externando a face mais violenta da fome, os homens aglomeram-se na porta do governador para exigir providências. As mulheres, crianças e idosos afastam-se do confronto direto e no primeiro plano exibem para o fotógrafo outra violência. Como fantasmas, seus corpos vagueiam pelas ruas da cidade, ostentando ainda alguns objetos, fragmentos gastos de antigas fortunas. Posses e identidades ficaram para trás, a seca destruiu tudo, só restou o desespero e a fome. Esta foto fez parte do acervo particular do ex-ministro e ex-governador Augusto Tavares de Lyra.
Retirantes da seca nas adjacências das ruas adjacentes a praça Augusto Severo.
Fotografia de 1904, feita por Bruno Bougard, destacando um grande número de retirantes da seca nas proximidades do Teatro Carlos Gomes, em Natal. Pelo registro é possível ter noção da quantidade de retirantes que se dirigiram à capital norte-rio-grandense tentando fugir da assoladora seca que atingia o estado, sendo possível ainda conjecturar a intensidade do impacto que esses indivíduos provocaram na acanhada Natal do início do século XX. A imagem apresentou um grande número de sujeitos com vestes simples, enxadas nas mãos e com seus filhos ainda crianças nas proximidades do Teatro Carlos Gomes, no bairro Ribeira. Ainda pela fotografia, depreende-se como os flagelados dominavam toda a região próxima ao teatro, estavam concentrados para serem distribuídos em frentes de trabalho pela cidade. Contudo, o periódico fluminense O Malho não veiculou mais informações sobre a fotografia, apenas apresentando a acompanhada da seguinte legenda: “na praça principal da capital do Rio Grande do Norte, os flagelados partindo para os trabalhos públicos”.

O Diário do Natal também demonstrava sua opinião nas reportagens da folha, no que diz respeito ao processo, encabeçado pelo governo, de desapropriação das moradias instaladas no futuro bairro da Cidade Nova. As reportagens, sempre em tom dramático, mostravam a violenta ação de tomada dos espaços ocupados pelos barracões, que aconteciam, segundo o jornal, sem que os moradores recebessem qualquer tipo de indenização.

Em virtude de tal drama os redatores 
do Diário do Natal apelidaram o novo bairro de Cidade das Lágrimas, pois o novo bairro teria nascido das lágrimas dos desabrigados.  SERVIÇO de cabra cega. Diário do Natal, Natal, 10 abr.1904.

Enquanto o oposicionista Diário do Natal criticava os feitos do governo, o jornal A Republica, pertencente à família Maranhão, ignorava qualquer problema social ocasionado pela reorganização dos espaços urbanos de Natal. Enquanto o Diário do Natal denunciava desvios de verba e ostentação do governo com a construção do teatro, 1904, A República comenta as estréias e elogiava as atuações dos artistas. A REPUBLICA, Natal, mar. 1904.

Quanto às demais obras de destaque do governo de Alberto Maranhão, merecem aqui atenção a iluminação a gás acetileno, em 1905, a iluminação elétrica, em 1911, a implantação de  bondes a burro, no ano de 1909 e elétricos, inaugurados em 1911 construção de passeios públicos e jardins públicos e por fim a construção do Teatro Carlos Gomes, concluído em 1904, que veio responder às aspirações das elites locais por um teatro capaz de trazer companhias artísticas de maior porte à cidade. Sobre a implantação dos serviços de transporte e iluminação publica na cidade de Natal ver: ANDRADE, Alenuska. À luz da modernização a modernidade da luz: a introdução da energia elétrica em natal. In: FERREIRA, Angela Lúcia; DANTAS, George. Os indesejáveis na cidade. In:______.(Org.) Surge et ambula: a construção de uma cidade moderna Natal, 1890-1940. ; COSTA, Madislaine. Quando a modernidade vinha de bonde. 1998. Monografia (Arquitetura e Urbanismo) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. [1998].

Poste elétrico na Avenida Junqueira Aires em 1914.

No caso de Natal, a busca pelo progresso era uma prioridade não apenas para os governantes, mas também para uma grande parte dos intelectuais da cidade. Essa ansiosa busca pode ser confirmada na ênfase dada pelos diversos periódicos que circulavam na cidade, no início do século.Todos revelavam, em algum momento, matérias ou propagandas que comemoravam, aclamavam ou reivindicavam a chegada do espírito moderno a Natal.

Melhoramentos

Em 1908, um jornalista do Diário do Natal já aponta elementos da vida moderna que eram desfrutados pela população da capital do Estado. O bonde, a iluminação pública, a maior 
freqüência feminina nas ruas da cidade e o cinematógrafo são elementos exaltados pelo jornalista.

Para essas elites, a inclusão desses elementos no cotidiano da cidade representava a entrada de Natal em um patamar de superioridade frente a outros núcleos urbanos, aproximando-a de cidades modelos de civilidade, como o Rio de Janeiro, e de metrópoles como Paris e Londres. Em tom descontraído, os elementos da vida moderna aparecem na seguinte nota do Diário do Natal:

Um amigo rebelde, com quem ante-hontem palestrava, à lua, ao ver passar completamente cheio o bonde que descia do bairro alto, teve essa lembrança feliz: Natal é uma terra muito accessível ao progresso. (…) O habito ronceiro do elemento feminino vae modificando para melhor. Busca as ruas cheias de luz, talvez para fortalecer os músculos e a alma. O amigo Braz tem razão. Sem bonde gentil e progressista, jamais teríamos uma cidade affeita ao smartismo da leveza carioca, cinematographo vivo e sempre actual da vida parisiense e londrina. A variação da palavra inglesa smart presente na nota era usada pelos brasileiros do início do século como sinônimo de estilo e distinção, tal como a palavra francesa “chic”. GRANDE século. Diário do Natal, Natal, 12 set. 1908.


“Isso significava que a rua Doutor
Barata, a rua das Virgens, a Duque
de Caxias, a Tavares de Lyra e
principalmente a Praça Augusto Severo
[…], estavam floridas de mulheres bonitas,
que desfilavam seus vestidos de
melindrosas, suas meias de seda e seus
sapatos de saltos altos e grossos,
semelhantes aos das dançarinas de
flamengo, até mesmo pela correia
trapassada no peito do pé.”
Augusto Severo Neto
(SEVERO NETO, 1985, p. 113).

A preocupação da elite governante em transformar Natal numa cidade moderna não estava isenta de críticas. O jornal Diário do Natal, inúmeras vezes, questionava as decisões do governo com relação às obras de melhoramento.

Em suas reportagens, os jornalistas do Diário do Natal geralmente punham em questão a origem do dinheiro responsável pela execução das obras e a necessidade de prosseguir com elas frente a outras urgências do Estado, como o combate à seca. 

Exemplo da posição dos jornalistas do Diário do Natal pode ser encontrado num artigo sobre as obras públicas de aterro e ajardinamento da Praça Augusto Severo em 1904. Nesse artigo a oposição critica a postura do governador Tavares de Lyra, que agiria somente em função dos interesses dos seus pares, a mando do seu sogro, Pedro Velho: 

S. Excia. faz o que quer e bem entende no interesse de sua oligarchia; á seu sabor do seu sogro decreta os impostos e gasta as rendas publicas, sem a menor attenção, nem cavaco as contribuintes. Manda fazer um jardim publico, obra de luxo, de elevado custo, sem que para isso tenha a menor autorização do poder legislativo, porque vive s. exc. em absoluta e permanente dictadura financeira. GOVERNO urso. Diário do Natal, Natal, 14 jul. 1904.

Apesar da postura crítica, os jornalistas do Diario do Natal não eram contrários aos  ‘melhoramentos’ implementados em Natal. Afinal, a chegada do progresso à capital do Estado era clamada por toda a elite letrada do período.

No espaço público Natal no início do Século XX destacava-se pelas as construções de praças, largos e avenidas com canteiros centrais, decisivos para espraiar o sentimento de se estar vivendo em uma cidade em transformação. Foram significativas as obras de construção do Porto, o aterro e a drenagem da Praça da República, hoje conhecida por Praça Augusto Severo (Ribeira), a abertura de estradas carroçáveis e de ferro, diminuindo o isolamento da cidade com o interior, o surgimento novos bairros (Cidade Nova, entre 1901 e 1904, e Alecrim, oficializado em 1911), a retificação de algumas ruas, como a Rua do Comércio (atual Rua Chile); a abertura de novas ruas (Rua Sachet, atual Duque de Caxias, Almino Afonso e a Tavares de Lyra); o aterro e nivelamento da Praça Leão XII e o aformoseamento da Cidade Alta, com o calçamento e arborização das principais ruas e a demolição de dezenas de edifícios que não atendiam as exigências de alinhamento e salubridade.

O que o jornal questionava era o modo como os melhoramentos estavam sendo conduzidos pelo governo. Esta posição aparece claramente em uma nota do Diário do Natal sobre a construção de duas novas avenidas em 1907. A primeira deveria seguir desde o Cais Augusto de Lyra até a rua Bom Jesus, e a segunda da praça Augusto Severo até a rua Silva Jardim.

O Conselho de Intendência investiu em diversas outras ações para aformosear a cidade, melhorar suas vias de comunicação e tornar mais racional seu traçado. Entre elas, estavam a construção do cais de desembarque na Tavares de Lyra (ver imagem abaixo), o novo calçamento na praça Augusto Severo, a reconstrução da ponte de Guarapes, na estrada de rodagem que ligava a capital à cidade de Macaíba, além da construção de uma galeria para drenagem das águas pluviais na Avenida Junqueira Ayres, sempre alagada nos períodos de chuvas. Fonte: INTENDÊNCIA Municipal. RELATÓRIO 1927, s.d – b.

A nota do jornal diz respeito às desapropriações das residências que atrapalhariam as obras. Deste modo, o jornalista se põe na seguinte posição: “Não somos contrários aos melhoramentos da cidade, mas [que sejam] sem prejuízo dos seus actuais  proprietários, na sua maioria pobres”. NOVAS avenidas. Diário do Natal, Natal, 1 out. 1907.

Os investimentos feitos pelo governo em Natal na primeira década do século XX, fossem eles apoiados ou criticados, lentamente transformaram as feições da cidade. Por mais que Natal não tenha passado por nenhuma reforma urbana radical, como ocorreu em muitas cidades brasileiras, a mudança na estrutura viária, que passou a ser feita com a implantação dos bondes, já puxados por carros elétricos em 1911, pelo novo teatro, pelo cinema, pelas novas praças e jardins, além da implementação de iluminação pública elétrica e pela construção de um novo bairro, tudo isso contribuiu para a manutenção dos desejos das elites de transformar Natal numa cidade cosmopolita e moderna. Na segunda década do século XX, já era possível ver muitas dessas mudanças.

PRAÇA AUGUSTO SEVERO – RIBEIRA – NATAL/RN
Inauguração da estátua em Natal, Rio Grande do Norte, a 12 de maio de 1913. O orador foi o grande tribuno Dr. Sebastião Fernandes. Note-se à direita da estátua a Bandeira Francesa que veio cobrindo seu corpo até o Brasil.
Fotografia: www.reservaer.com.br

Natal também civiliza-se: sociabilidade, lazer e esporte na Belle Époque Natalense (1900-1930) / Márcia Maria Fonseca Marinho. – Natal, RN, 2008

ILUMINA-SE A CIDADE: NOTAS SOBRE A FORMAÇÃO DOSISTEMA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA EM NATAL (1911-1930). George Alexandre Ferreira Dantas, Barbara Gondim Lambert Moreira e Ítalo Dantas de Araújo Maia.

OS “INDESEJÁVEIS” NA CIDADE: AS REPRESENTAÇÕES DO RETIRANTE DA SECA (NATAL, 1890-1930). Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9788]. Nº 94 (96), 1 de agosto de 2001

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